sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Entrevista Fernando Meirelles

15/01/2009
Fonte: Blog do Fred

Fernando Meirelles: "Justiça desenhada para 'profissionais' e para quem tem dinheiro"
O site "Judiciário e Sociedade", mantido por magistrados gaúchos, entrevistou o cineasta Fernando Meirelles, diretor de "Cidade de Deus", que repassou ao juiz federal Fausto Martin De Sanctis troféu recebido em 2008. Fazendo a ressalva de que é leigo em questões do Judiciário, Meirelles alinhou várias críticas sobre o sistema: "A justiça brasileira foi desenhada para profissionais e para quem tem dinheiro para bancar sua complexidade", diz o diretor de "Ensaio sobre a cegueira".
A seguir, a íntegra da entrevista:
A principal homenagem pública prestada à independência judicial no Brasil, no ano de 2008, partiu de alguém que não tem qualquer relação com o mundo do Judiciário. O reconhecimento veio de um dos grandes artistas brasileiros da atualidade, que é um dos nossos mais destacados cineastas em atividade, tendo já iniciado exitosa carreira internacional.
Diretor de obras que são referência no cinema brasileiro e mundial, como "Cidade de Deus", "O jardineiro Fiel" e "Ensaio sobre a Cegueira" - os dois primeiros foram distinguidos com quatro indicações para o Oscar cada um - ao receber o Prêmio Personalidade do Ano de 2008, concedido pela revista "Veja", em São Paulo, em dezembro de 2008, Fernando Meirelles (foto) disse que uma pessoa mais do que ele merecia estar ali recebendo aquela distinção. Esta pessoa era o juiz da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, Fausto De Sanctis, porque não se intimidou ante as pressões sofridas no exercício da jurisdição. Meirelles repassou o troféu ao magistrado, que o guarda agora sobre sua mesa de trabalho. No evento de premiação, o cineasta expressou viva indignação contra os ataques dirigidos a De Sanctis durante sua atuação em processos envolvendo pessoas poderosas.
O cineasta Fernando Meirelles confirma, com este gesto, uma das principais características dos personagens de seus filmes e dele próprio: a indiferença aos dramas humanos não faz parte de sua ética. "Judiciário e Sociedade" entrevistou Meirelles, enviando as perguntas por e-mail. Ele prontamente respondeu.
Judiciário e Sociedade - O teu reconhecimento ao trabalho do juiz Fausto De Sanctis demonstra uma preocupação com as pressões dirigidas contra a magistratura. Chamou a atenção não apenas do meio artístico como do meio jurídico a homenagem que prestaste ao juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo. Gostaríamos de conversar contigo a respeito dessa e de outras questões envolvendo o Judiciário brasileiro.
Fernando Meirelles - Me sinto meio chutador se ficar dando palpite em área que não é a minha. Mas com esta ressalva feita, vamos lá.
Judiciário e Sociedade - A independência judicial é uma garantia dos cidadãos. Existe para assegurar julgamentos justos, independente de quem está sendo julgado. Como vês a atuação do Poder Judiciário?
Fernando Meirelles - Como espectador, minha impressão é de que a atuação do Supremo Tribunal Federal deixa muito a desejar. Acho questionável a atuação do ministro Gilmar Mendes nos processos que envolvem pessoas influentes. Percebo certo esforço em proteger essas pessoas. Não reconheço no STF a autoridade e nem o direito de exercer o poder que exerce. Aprendi na escola que o Poder Judiciário era autônomo, mas sabemos que não é assim, já que sua cabeça é eleita pelo Executivo e o Legislativo. Não por mérito, mas por apadrinhamento e interesses políticos. Esse sistema é o que há de mais retrógrado no país. A mudança desse quadro depende dos próprios magistrados e da sociedade, uma vez que não há nenhum interesse do Presidente da República ou do Congresso em acabar com essa subordinação do STF, como existe hoje. Resistir a pressões, como fez o juiz De Sanctis, é o único caminho para que a justiça brasileira tenha alguma credibilidade.
Judiciário e Sociedade - Qual a visão que tens do nosso sistema judicial?
Fernando Meirelles - Falo, repito, como um total leigo no assunto e posso estar muito equivocado, mas minha visão do Poder Judiciário no Brasil não é nada boa. Os juízes de primeira instância me parecem ser o que há de melhor neste sistema, dali para frente a justiça vai ficando cada vez mais vulnerável a todo tipo de pressão, em meio ao labirinto jurídico, com seus milhões de recursos, foro privilegiado, etc. Vendas de sentenças já foram denunciadas, a oferta variando conforme o órgão onde está o processo. É evidente que há milhares de juízes corretos no país, principalmente entre os mais jovens, mas infelizmente eles não parecem conseguir controlar o sistema como um todo, até porque as promoções, segundo ouvi dizer, dependeriam um pouco da "flexibilidade" de quem está subindo na carreira.
Judiciário e Sociedade - Como cineasta e como cidadão, terias sugestões a dar para aperfeiçoar a instituição?
Fernando Meirelles - Mais uma vez preciso lembrar que conheço muito pouco sobre o funcionamento do Poder Judiciário brasileiro. Pela sua complexidade, acho que não sou o único. Mas, como leigo, afirmo que há muitas coisas que me incomodam. Aponto algumas delas. O foro privilegiado é, talvez, a mais absurda instituição do país. E, mais cômico ainda, é o político poder abrir mão do mandato, para que seu processo mude de corte, vá assim ganhando tempo e fique se reelegendo. Estes absurdos deveriam ser extintos completamente. Somos ou não somos iguais perante a lei? As infinitas possibilidades de recurso e formas de se ganhar tempo num processo, aqui no Brasil, beiram o absurdo. Sabemos que as firulas e os bordados da lei afastam investidores no Brasil. Entrar nesta área é como andar em campo minado. A justiça brasileira foi desenhada para profissionais e para quem tem dinheiro para bancar sua complexidade. Não haver punição para o perjúrio no processo, para os advogados, me parece um despropósito também. Minha impressão é que aqui alguns advogados (evitando sempre as generalizações) não só instruem como às vezes parecem redigir as mentiras que seus clientes devem dizer no tribunal. Uma vez constatada a mentira muda-se a versão e fica por isso mesmo. Se o perjúrio, no processo, fosse um crime inafiançável, acho que toneladas de processos e anos de trabalho seriam economizados nos tribunais. Seria uma revolução em todo sistema judiciário. Mais do que o jazz ou do que o cinema norte-americano, a seriedade com que os americanos encaram o perjúrio é o que mais me encanta nos EUA. Minha lista seria muito mais longa. Vou poupá-los. Obrigado.

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