ENTREVISTA - TARSO GENRO
“Judiciário não pode capturar prerrogativas do Executivo”
Em entrevista à Carta Maior, o ministro da Justiça, Tarso Genro, fala sobre o caso Battisti e suas repercussões políticas. Para ele, esse debate vai além de questões técnicas sobre a extradição, envolvendo visões diferentes sobre a democracia, o Estado de Direito e a Soberania. Tarso Genro critica a tentativa de alguns juízes do STF de avançar sobre prerrogativas do Executivo e estranha o silêncio na mídia sobre os precedentes existentes no Supremo, que apóiam a decisão contrária à extradição, e também sobre outras concessões de refúgio feitas pelo Ministério da Justiça, como as dadas a dezenas de bolivianos, ligados à oposição de direita, que realizaram ações armadas contra o governo Evo Morales.
Maro Aurélio Weissheimer
O debate envolvendo a situação do italiano Cesare Battisti vai além de questões técnicas envolvendo o instrumento de extradição. Na polêmica gerada pelo caso, os argumentos tratam de questões relacionadas ao atual estágio da democracia brasileira e ao Estado de Direito. Na avaliação do ministro da Justiça, Tarso Genro, esse debate é marcado por duas visões diferentes a respeito da democracia, do Estado de Direito, da Soberania e da própria crise pela qual os atuais modelos democráticos estão passando.
Em entrevista à Carta Maior, Tarso Genro fala sobre o caso e critica a tentativa de alguns juízes do Supremo Tribunal Federal de capturar a função política e a legitimidade do Poder Executivo para exercer suas prerrogativas. Além disso, analisa a qualidade do debate público sobre o tema. O ministro estranha o silêncio da maioria da mídia brasileira sobre os precedentes existentes no Supremo, que apóiam a decisão contrária à extradição, e também sobre outras concessões de refúgio feitas pelo Ministério da Justiça. E exemplifica:
“Concedemos, pelo CONARE, refúgio a dezenas de bolivianos, ligados à oposição de direita na região de Pando e de Santa Cruz, que realizaram ações armadas ilegítimas e ilegais contra o governo de Evo Morales. Após essas ações, eles ingressaram no território brasileiro. Teoricamente, eram guerrilheiros de direita. Receberam refúgio do governo brasileiro. Ninguém, mas absolutamente ninguém, da grande imprensa fez qualquer comentário sobre isso, pois este fato demonstra não só a nossa postura acolhedora em relação a pessoas que cometem delitos políticos dentro da democracia – como ocorreu na Bolívia -, como também a isenção com que o Ministério da Justiça trata esses assuntos”.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Battisti?
Tarso Genro: Dentro da tradição específica do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria houve duas mudanças fundamentais. A primeira delas foi a avocação, pelo Supremo, sob o pretexto de examinar um ato administrativo do Poder Executivo, de um juízo político que, em se tratando de questões de refúgio, é prerrogativa do Executivo, no caso, através do CONARE, com recurso ao Ministro da Justiça. Ao avocar esse juízo político, por uma maioria de 5 a 4, o Supremo Tribunal Federal produziu uma violação clara e frontal de um dispositivo legal. Esse dispositivo é aquele que afirma que, uma vez deferido o refúgio, interrompe-se o processo de extradição. Para dar continuidade e lógica a essa primeira decisão, teria que decidir que o presidente da República perderia os poderes contidos na Constituição de representar e decidir os destinos do país no que se refere à política externa, capturando assim, definitivamente, aquilo que é um juízo político do Executivo.
Neste momento, é que o ministro Ayres Brito, com seu voto, fez o Supremo retornar ao leito da Constituição. Trata-se, na verdade, de um episódio marcante na história do direito e da democracia no país e o Ministro Ayres Brito, mais aqueles que já tinham votado com a sua posição passarão à história como exemplo de sensatez e respeitabilidade cívica. O que o STF faria com a decisão defendida dignamente pelos demais seria exercer, a partir dela, uma tutela jurídico-burocrática sobre a política do Executivo. Isso transferiria para o Poder Judiciário a legitimidade originária das urnas, que é outorgada ao presidente, para o Poder Judiciário. Isso seria muito grave, uma espécie de subsunção, por meios “suaves”, que capturaria a legitimação dada pelas urnas ao chefe de Estado, que é o presidente da República, para definir inclusive a nossa política externa.
Carta Maior: Um dos grandes debates que vem sendo travado neste caso gira em torno da caracterização dos crimes imputados a Battisti – se seriam de natureza política ou comum. Todo o debate travado na e pela mídia já tem, desde o início, uma conotação fortemente política. Essa politização do caso, expressa em notícias, artigos, declarações e editoriais, não reforça a caracterização do mesmo como um problema político e não uma questão envolvendo um crime comum? Uma segunda pergunta, derivada desta primeira, é sobre o comportamento da mídia brasileira no episódio. Qual sua opinião sobre essa atuação?
Tarso Genro: A posição majoritária da mídia teve três momentos. O primeiro foi marcado por um esforço gigantesco para descaracterizar a qualidade jurídica do meu despacho, dizendo que se tratava de uma pessoa que não era um jurista e que, portanto, não poderia ter interpretado corretamente a situação criada com o pedido de refúgio do sr. Battisti. Trata-se de uma posição bastante conhecida nos meios acadêmicos do país: juristas são aqueles que relativizam a Constituição para atender os interesses do “mercado” e não aqueles que defendem a Constituição a partir da predominância dos direitos fundamentais.
O segundo movimento foi tentar criar aquilo que se chama, do ponto de vista da filosofia heidegeriana, uma pré-compreensão. Uma pré-compreensão na sociedade para influir sobre o Supremo Tribunal Federal, dizendo, em primeiro lugar, que estava provado que Battisti matou; em segundo, que sempre foi e é um assassino e, em terceiro lugar, é um assassino terrorista e, conseqüentemente, não participou de uma ação política e sim de um ou dois assassinatos comuns. Eu sempre digo para as pessoas que me cercam que se eu fosse uma pessoa que não conhecesse o processo e considerasse apenas as informações veiculadas por setores da grande imprensa, também votaria pela extradição do sr. Battisti, pois elas estão orientadas apenas por um juízo sobre o tema.
O terceiro grande movimento foi tentar incidir diretamente sobre a posição do STF, estimulando a retirada do juízo político da esfera da presidência, e capturando, pelo Supremo, inclusive decisões sobre a política externa do país. Uma decisão como esta abriria um precedente que extinguiria todos os limites para essa captura de juízos políticos próprios do Executivo pelo Supremo.
Esta seqüência de posições tem um caráter nitidamente ideológico e acabou desmascarada, na minha opinião, por dois fatos fundamentais. Primeiro, porque pelo menos uma parte da cidadania ficou sabendo que havia dezenas de precedentes que confortavam a minha decisão e não a posição que alguns juízes do Supremo estavam tentando tomar. O segundo fato ficou expresso no próprio voto do ministro Gilmar Mendes. Ele teve a honestidade intelectual suficiente para dizer que os objetivos que a organização de Battisti perseguia eram objetivos políticos, mas que o delito cometido na busca desses objetivos era um delito comum. Portanto, ele faz uma cisão, não somente do processo histórico em que a Itália estava imersa naquele momento, mas também uma cisão impossível de ser feita racionalmente, do fato que estava sendo julgado naquele momento. Se era verdade que Battisti teria cometido um homicídio, também era verdade que se tratava de um delito cometido no interior de um processo político, o que caracterizaria, de maneira suficiente, o delito político e não o comum. Aliás, como havia sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em outras ocasiões. Lembrem-se que estas mesmas posições sobre o direito e a Constituição são defendidas por aqueles que afirmam que, quem matou na tortura, aqui no Brasil, está anistiado.
Não bastassem todas essas questões também circulou pela mídia uma informação solerte e mentirosa do ponto de vista histórico e em relação ao próprio fato. Isso foi trabalhado em vários editoriais e em várias informações paralelas. Consiste em dizer que não existe crime político dentro da democracia. Esse conceito remete a um outro, a saber, que só pode existir crime político dentro de um regime ditatorial. A visão correta, humanista, moderna e democrática é exatamente a contrária. O que ocorre em atos de resistência contra uma ditadura não é um crime, mas sim o direito universal de resistência contra o arbítrio e contra o poder ditatorial. Portanto, isso não é um ato que possa ser tipificado. O crime político dá-se ou em regimes de transição para uma democracia, ou na democracia. Aí é que o tipo pode ser qualificado como criminoso, de natureza política ou não, dependendo do caso. Neste sentido, acho que esse debate que está sendo travado em torno do caso Battisti é exemplar. Na minha opinião, não há certamente nenhum tipo de conspiração. O que há são duas visões a respeito da democracia, do Estado de Direito, da Soberania e da própria crise pela qual os atuais modelos democráticos estão passando, impotentes para realizar uma coesão social mínima de novo tipo, que ocorreu historicamente num pequeno período da social-democracia.
Carta Maior: O sr. falou em precedentes no Supremo relacionados ao caso. Poderia citar alguns?
Tarso Genro: O caso do colombiano Oliveira Medina é um exemplo. O do italiano que hoje é dono de um restaurante no Rio de Janeiro é outro. Há casos, inclusive, de pessoas que estiveram envolvidas em ações armadas de rua, que resultaram em várias mortes. Na minha gestão, por exemplo, foi dado refúgio a dezenas de bolivianos liderados pela oposição de direita na região de Pando e de Santa Cruz, que realizaram ações armadas ilegítimas e ilegais contra o governo de Evo Morales. Após essas ações, eles ingressaram no território brasileiro. Teoricamente, eram guerrilheiros de direita. Receberam refúgio do governo brasileiro. Ninguém, mas absolutamente ninguém, da grande imprensa fez qualquer comentário sobre isso, porque isso demonstraria não só a nossa postura acolhedora em relação a pessoas que cometem delitos políticos dentro da democracia – como ocorreu na Bolívia -, como também a isenção com que o Ministério da Justiça trata esses assuntos. Mas isso não aparece na imprensa, talvez porque acarrete a demolição da tese de que eu sou apenas um quadro de esquerda que está protegendo um presumido outro militante de esquerda.
Carta Maior: O editorial da revista Carta Capital desta semana afirma que uma possível saída jurídica para o presidente da República seria conceder asilo a Battisti. Existe essa possibilidade?
Tarso Genro: Pode ser uma saída. Eu não sei qual vai ser a decisão do presidente sobre o assunto. O presidente, quando decide sobre isso, decide não apenas sobre uma questão concreta, mas também sobre uma relação entre dois Estados. O refúgio é um ato administrativo do Ministro da Justiça, depois de passar pelo Comitê Nacional de Refugiados, que é deferido quando existe um certo temor de perseguição. Já o asilo político é uma decisão complexa, que passa pela Polícia Federal, pelo Ministro de Relações Exteriores, mas sempre deve refletir a determinação política do Presidente, que é o “chefe” direto da Política Externa, função diretamente vinculada à Constituição. Há uma legislação relacionada a essa decisão, mas o fundamento do asilo político está inscrito diretamente na Constituição e vem de um comando supremo de decisão política do presidente.
Carta Maior: Outro tema relacionado ao caso, mencionado pelos defensores da extradição, fala da possibilidade de uma grave crise diplomática entre o Brasil e a Itália, caso Battisti não for extraditado. Qual sua opinião sobre isso? Existe tal ameaça?
Tarso Genro: Isso é uma chantagem primária que já foi feita quando eu proferi meu despacho. São posições divulgadas para pressionar o presidente a ter medo de um conflito diplomático com a Itália e que prestigiam a grosseria de alguns ministros italianos quando se reportaram a juristas brasileiros e ao despacho do ministro da Justiça. É uma tentativa de intimidação dizer que haveria uma crise política. É como dizer ao presidente da República: não exerça a soberania, isso pode desgostar os outros. Esse tipo de argumento não ecoa na cabeça do presidente, que já deu demonstrações suficientes de que dirige o país exercitando a soberania nacional. O deferimento ou indeferimento da permanência de Battisti no país não será balizado por uma visão primária como essa.
Carta Maior: Na sua opinião, para além do debate jurídico em torno desse tema, o que esse caso mostra sobre o atual estágio da democracia brasileira e da qualidade do debate público sobre a democracia?
Tarso Genro: Posso dar um exemplo concreto. Na semana passada, foram divulgadas na imprensa – de uma maneira muito asséptica e cuidadosa, aliás – declarações de uma pessoa que teria conhecimento e participação direta ou indireta no esquartejamento do ex-deputado Rubens Paiva, que foi seqüestrado e assassinado na época do regime militar. Ele não teria sido assassinado por militares, mas sim por civis vinculados aos aparatos de repressão paralelos e ilegais que funcionavam naquela época e que eram tolerados e até estimulados pelos governantes de então. Não li nenhuma palavra sobre esse tema dos articulistas que defendem a extradição de Battisti. Nenhum juízo de valor, nenhum pedido para que a Justiça brasileira se mova para investigar esse fato, eventualmente punir os envolvidos, mesmo que seja para depois anistiar os cidadãos brasileiros que participaram desses órgãos repressivos e que, até hoje, não sofreram sequer uma advertência do Estado após a Lei da Anistia.
A anistia foi um momento importante na redemocratização do país, mas foi produto de um compromisso entre as elites políticas democráticas da época e as elites do regime militar. Esse compromisso vem sendo observado pelas sucessivas manifestações do Estado brasileiro até agora. O governo do presidente Lula está fazendo um esforço, através da Secretaria de Direitos Humanos, dirigida pelo ministro Paulo Vanuchi, e da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, para resgatarmos a memória daquele período e fazermos um pouco de Justiça.
O caso Battisti é emblemático, envolvendo uma tentativa de luta armada dentro de um regime democrático que, naquele momento, atravessava uma crise profunda. Ninguém discute, na Europa, se esses guerrilheiros, naquela época, eram guerrilheiros políticos ou não. A nossa legislação não exige que as pessoas não tenham participado de luta armada ou não tenham participado de atos violentos para conseguir refúgio. Ela exige que haja um certo temor de perseguição, de uma parte, e que o “crime” tenha sido de natureza política. Na verdade, o que está se discutindo nesta questão do sr. Battisti é muito mais do que sua extradição. Está se discutindo uma memória sobre os anos de chumbo na Itália e aqui no Brasil. Se observamos a posição da maioria dos cronistas que escrevem sobre o assunto, a maioria dos editoriais, veremos que são praticamente os mesmos textos e editoriais que são furibundos contra a política de cotas, que são contra que se processe os torturadores, que chamam as indenizações a prisioneiros, torturados e perseguidos políticos de gastos públicos inúteis. São os mesmos, aliás, que, em última análise, proferem as maiores ofensas contra quem defende uma posição diferente.
Durante todo esse debate, quando nomes como Celso Bandeira de Mello, Fábio Comparatto, José Afonso Silva e Dalmo Dallari falaram sobre o caso e quando eu falei por obrigação como ministro da Justiça e não como jurista do porte deles, nunca ofendemos ninguém, nunca atacamos ninguém, nunca desconstituímos pessoalmente ninguém. O que os defensores da extradição fazem contra quem tem uma posição contrária a essa é partir sempre para desqualificações e ofensas pessoais. Isso é um método para transformar um debate de opiniões e princípios em um debate burocrático sobre quem têm mais poder de violentar a opinião do outro. Trata-se, então, na verdade, de um debate entre o autoritarismo e a democracia, um debate entre concepções de Estado de Direito. Até hoje, também não se viu destas pessoas nenhum comentário sobre todas as decisões tomadas no Supremo que vão na mesma direção que defendemos. Não é feito, por exemplo, nenhum vínculo entre esse caso e o da Olga Benário, com exceção daquela carta da Anita. Eu não disse e não sustento que são casos iguais. Mas são casos análogos. Olga Benário também foi acusada de ter cometido ações militares e de ter baleado policiais. A extradição dela deu no que deu, em função de um exame burocrático, tecnicista e desumano da norma. Ou seja, em função de uma pré-compreensão de que era preciso aniquilar um determinado inimigo que estava ali presente naquela época; no caso, os comunistas.
Carta Maior: Um dos argumentos utilizados pelos defensores da extradição consiste em dizer que há uma grande unanimidade na Itália em torno dessa posição, incluindo aí a própria esquerda italiana. Qual sua posição sobre esse argumento?
Tarso Genro: A informação que tenho é que existe, sim, um sentimento majoritário na Itália a favor da extradição de Battisti. Isso está relacionado, ao meu ver, entre outras coisas, à cultura política italiana atual. É uma cultura política que tem origens profundamente democráticas que vem do Renascimento, do período da unificação nacional do país e das guerras de resistência ao fascismo. Mas que também está limitada por profundas derrotas políticas da esquerda italiana nos últimos tempos, que não lhe permitiu avançar com coerência dentro da democracia, conseguindo apresentar uma alternativa democrática, que ganhe politicamente e respeite o centro, como fizeram Lula e o PT aqui no país. Uma situação que levou a esquerda italiana a uma situação de total defensiva em relação aos valores tradicionais da esquerda democrática. Eu não acredito que a esquerda italiana ou a maioria do povo italiano tenha qualquer tipo de má fé neste caso, ou que estejam construindo uma posição para fazer uma vendetta. Acho que é um caldo sócio-cultural que explica essa posição majoritária. É certo, porém, que não há unanimidade.
Quando falei, recentemente, que havia algumas manifestações que expressavam posições de cunho fascista no espectro político italiano, aqui no Brasil houve uma insurreição e uma indignação expressas na maioria da mídia. A mesma indignação que faltou quando ministros italianos, que compõem o espectro da extrema direita, ofenderam gravemente juristas brasileiros e o próprio Estado brasileiro. Essas manifestações de virulência compõem um espectro político-ideológico que defende certos interesses. Um destes interesses é, efetivamente, que a grande mídia possa tutelar a democracia no Brasil a partir de seus valores que tem se chocado com os valores expressos pelo povo através das eleições democráticas. Isso, de um lado, faz parte do processo democrático, do exercício da liberdade de imprensa, que deve ser preservado, mas de outro, deve ser respeitado também nosso direito de responder a essa posição e fazer circular as nossas idéias de esquerda de maneira equânime.
O que está acontecendo é que esse setor da mídia não está aceitando que se conteste as suas posições. Ordinariamente, não publicam nossas respostas e, quando publicam, o fazem de uma maneira escondida, exercendo um autoritarismo burocrático sobre a formação da opinião. Isso não é nenhuma novidade. Há, hoje, um grande controle da mídia sobre a vida pública brasileira. É ela que faz a pauta dos partidos, é ela que faz a pauta dos parlamentos, é ela que interfere na pauta do Supremo, invadindo, inclusive, correspondência privada dos ministros. Mas creio que isso faz parte de um grande processo de reorganização democrática do país, e (a mídia) sequer deve ser demonizada em virtude dessas deformações, pois a liberdade de informar, mesmo deformadamente, é um bem maior que deve ser preservado, sob o risco da democracia sucumbir.
Carta Maior: Como fica a situação de Battisti agora? Segue preso aguardando a decisão presidencial?
Tarso Genro: Tecnicamente, sim. Pela informação que tenho, ele permanece em greve de fome que, na minha opinião, deveria suspender. Já manifestei essa posição publicamente. O presidente Lula também. A greve de fome é uma arma de um preso político. Battisti é um preso político no Brasil. E, na minha opinião, ele está preso ilegalmente, inclusive. Está sendo considerado como paciente de uma extradição comum, como um criminoso comum, não se dando a ele o direito de ser acolhido como refugiado, violando-se expressamente o texto legal que afirma que, quando é concedido o refúgio, interrompe-se o processo de extradição.
Entendo que essa posição do Supremo de não interromper o processo de extradição é ilegal. Mas quem, em última análise, deve dizer se é ilegal ou não é o próprio Supremo Tribunal Federal. Do ponto de vista formal, temos que respeitar e prestigiar a decisão do Supremo, pois é ele que dita a interpretação da lei em última instância. Isso não quer dizer que não possamos debater essa posição e, inclusive, criticá-la, pois ela vai mais além da situação do sr. Battisti, dizendo respeito à questão democrática no Brasil. O advogado de Battisti é que deve definir se vai pedir relaxamento de prisão, prisão domiciliar ou vai entrar com um habeas corpus tentando sua libertação. Não cabe ao Ministério da Justiça ter nenhuma intervenção sobre essa questão.
Carta Maior: Do ponto de vista jurídico a questão deveria obrigatoriamente chegar ao Presidente?
Tarso Genro: O único despacho que, se fosse respeitado pelo Supremo, não levaria o tema ao presidente da República, é o que dei concedendo o refúgio. Isso deixaria a questão de Battisti no âmbito do Ministério da Justiça, exclusivamente, sob minha responsabilidade e com o desgaste eventual que eu poderia ter, tomando essa decisão. Se eu tivesse indeferido a extradição, o advogado de Battisti poderia fazer um recurso hierárquico ao presidente da República. Com a decisão do Supremo, deu-se, na verdade, uma triangulação. O ministro da Justiça deu o despacho concedendo o refúgio. O Supremo disse que esse despacho era ilegal, anulou-o e concedeu a extradição. Mas, ao mesmo tempo, disse, corretamente, que o juízo final a respeito do assunto é do presidente da República. Tenho a impressão de alguém andou vendendo para os “formadores de opinião” a idéia de que o Supremo poderia “livrar” o Presidente de decidir sobre o assunto, como se o presidente fosse uma pessoa omissa, infensa a assumir responsabilidades inerentes ao seu cargo, o que seus sete anos de governo demonstram ser uma opinião equivocada e preconceituosa. Por convicção jurídica e postura política procurei uma solução definitiva com o meu despacho. A responsabilidade do assunto ter chegado ao primeiro magistrado da nação é de quem quis convencer o Supremo e a sociedade de que o STF poderia avançar sobre as prerrogativas do Presidente, violando a Constituição.
Em entrevista à Carta Maior, Tarso Genro fala sobre o caso e critica a tentativa de alguns juízes do Supremo Tribunal Federal de capturar a função política e a legitimidade do Poder Executivo para exercer suas prerrogativas. Além disso, analisa a qualidade do debate público sobre o tema. O ministro estranha o silêncio da maioria da mídia brasileira sobre os precedentes existentes no Supremo, que apóiam a decisão contrária à extradição, e também sobre outras concessões de refúgio feitas pelo Ministério da Justiça. E exemplifica:
“Concedemos, pelo CONARE, refúgio a dezenas de bolivianos, ligados à oposição de direita na região de Pando e de Santa Cruz, que realizaram ações armadas ilegítimas e ilegais contra o governo de Evo Morales. Após essas ações, eles ingressaram no território brasileiro. Teoricamente, eram guerrilheiros de direita. Receberam refúgio do governo brasileiro. Ninguém, mas absolutamente ninguém, da grande imprensa fez qualquer comentário sobre isso, pois este fato demonstra não só a nossa postura acolhedora em relação a pessoas que cometem delitos políticos dentro da democracia – como ocorreu na Bolívia -, como também a isenção com que o Ministério da Justiça trata esses assuntos”.
Carta Maior: Qual sua avaliação sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Battisti?
Tarso Genro: Dentro da tradição específica do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria houve duas mudanças fundamentais. A primeira delas foi a avocação, pelo Supremo, sob o pretexto de examinar um ato administrativo do Poder Executivo, de um juízo político que, em se tratando de questões de refúgio, é prerrogativa do Executivo, no caso, através do CONARE, com recurso ao Ministro da Justiça. Ao avocar esse juízo político, por uma maioria de 5 a 4, o Supremo Tribunal Federal produziu uma violação clara e frontal de um dispositivo legal. Esse dispositivo é aquele que afirma que, uma vez deferido o refúgio, interrompe-se o processo de extradição. Para dar continuidade e lógica a essa primeira decisão, teria que decidir que o presidente da República perderia os poderes contidos na Constituição de representar e decidir os destinos do país no que se refere à política externa, capturando assim, definitivamente, aquilo que é um juízo político do Executivo.
Neste momento, é que o ministro Ayres Brito, com seu voto, fez o Supremo retornar ao leito da Constituição. Trata-se, na verdade, de um episódio marcante na história do direito e da democracia no país e o Ministro Ayres Brito, mais aqueles que já tinham votado com a sua posição passarão à história como exemplo de sensatez e respeitabilidade cívica. O que o STF faria com a decisão defendida dignamente pelos demais seria exercer, a partir dela, uma tutela jurídico-burocrática sobre a política do Executivo. Isso transferiria para o Poder Judiciário a legitimidade originária das urnas, que é outorgada ao presidente, para o Poder Judiciário. Isso seria muito grave, uma espécie de subsunção, por meios “suaves”, que capturaria a legitimação dada pelas urnas ao chefe de Estado, que é o presidente da República, para definir inclusive a nossa política externa.
Carta Maior: Um dos grandes debates que vem sendo travado neste caso gira em torno da caracterização dos crimes imputados a Battisti – se seriam de natureza política ou comum. Todo o debate travado na e pela mídia já tem, desde o início, uma conotação fortemente política. Essa politização do caso, expressa em notícias, artigos, declarações e editoriais, não reforça a caracterização do mesmo como um problema político e não uma questão envolvendo um crime comum? Uma segunda pergunta, derivada desta primeira, é sobre o comportamento da mídia brasileira no episódio. Qual sua opinião sobre essa atuação?
Tarso Genro: A posição majoritária da mídia teve três momentos. O primeiro foi marcado por um esforço gigantesco para descaracterizar a qualidade jurídica do meu despacho, dizendo que se tratava de uma pessoa que não era um jurista e que, portanto, não poderia ter interpretado corretamente a situação criada com o pedido de refúgio do sr. Battisti. Trata-se de uma posição bastante conhecida nos meios acadêmicos do país: juristas são aqueles que relativizam a Constituição para atender os interesses do “mercado” e não aqueles que defendem a Constituição a partir da predominância dos direitos fundamentais.
O segundo movimento foi tentar criar aquilo que se chama, do ponto de vista da filosofia heidegeriana, uma pré-compreensão. Uma pré-compreensão na sociedade para influir sobre o Supremo Tribunal Federal, dizendo, em primeiro lugar, que estava provado que Battisti matou; em segundo, que sempre foi e é um assassino e, em terceiro lugar, é um assassino terrorista e, conseqüentemente, não participou de uma ação política e sim de um ou dois assassinatos comuns. Eu sempre digo para as pessoas que me cercam que se eu fosse uma pessoa que não conhecesse o processo e considerasse apenas as informações veiculadas por setores da grande imprensa, também votaria pela extradição do sr. Battisti, pois elas estão orientadas apenas por um juízo sobre o tema.
O terceiro grande movimento foi tentar incidir diretamente sobre a posição do STF, estimulando a retirada do juízo político da esfera da presidência, e capturando, pelo Supremo, inclusive decisões sobre a política externa do país. Uma decisão como esta abriria um precedente que extinguiria todos os limites para essa captura de juízos políticos próprios do Executivo pelo Supremo.
Esta seqüência de posições tem um caráter nitidamente ideológico e acabou desmascarada, na minha opinião, por dois fatos fundamentais. Primeiro, porque pelo menos uma parte da cidadania ficou sabendo que havia dezenas de precedentes que confortavam a minha decisão e não a posição que alguns juízes do Supremo estavam tentando tomar. O segundo fato ficou expresso no próprio voto do ministro Gilmar Mendes. Ele teve a honestidade intelectual suficiente para dizer que os objetivos que a organização de Battisti perseguia eram objetivos políticos, mas que o delito cometido na busca desses objetivos era um delito comum. Portanto, ele faz uma cisão, não somente do processo histórico em que a Itália estava imersa naquele momento, mas também uma cisão impossível de ser feita racionalmente, do fato que estava sendo julgado naquele momento. Se era verdade que Battisti teria cometido um homicídio, também era verdade que se tratava de um delito cometido no interior de um processo político, o que caracterizaria, de maneira suficiente, o delito político e não o comum. Aliás, como havia sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em outras ocasiões. Lembrem-se que estas mesmas posições sobre o direito e a Constituição são defendidas por aqueles que afirmam que, quem matou na tortura, aqui no Brasil, está anistiado.
Não bastassem todas essas questões também circulou pela mídia uma informação solerte e mentirosa do ponto de vista histórico e em relação ao próprio fato. Isso foi trabalhado em vários editoriais e em várias informações paralelas. Consiste em dizer que não existe crime político dentro da democracia. Esse conceito remete a um outro, a saber, que só pode existir crime político dentro de um regime ditatorial. A visão correta, humanista, moderna e democrática é exatamente a contrária. O que ocorre em atos de resistência contra uma ditadura não é um crime, mas sim o direito universal de resistência contra o arbítrio e contra o poder ditatorial. Portanto, isso não é um ato que possa ser tipificado. O crime político dá-se ou em regimes de transição para uma democracia, ou na democracia. Aí é que o tipo pode ser qualificado como criminoso, de natureza política ou não, dependendo do caso. Neste sentido, acho que esse debate que está sendo travado em torno do caso Battisti é exemplar. Na minha opinião, não há certamente nenhum tipo de conspiração. O que há são duas visões a respeito da democracia, do Estado de Direito, da Soberania e da própria crise pela qual os atuais modelos democráticos estão passando, impotentes para realizar uma coesão social mínima de novo tipo, que ocorreu historicamente num pequeno período da social-democracia.
Carta Maior: O sr. falou em precedentes no Supremo relacionados ao caso. Poderia citar alguns?
Tarso Genro: O caso do colombiano Oliveira Medina é um exemplo. O do italiano que hoje é dono de um restaurante no Rio de Janeiro é outro. Há casos, inclusive, de pessoas que estiveram envolvidas em ações armadas de rua, que resultaram em várias mortes. Na minha gestão, por exemplo, foi dado refúgio a dezenas de bolivianos liderados pela oposição de direita na região de Pando e de Santa Cruz, que realizaram ações armadas ilegítimas e ilegais contra o governo de Evo Morales. Após essas ações, eles ingressaram no território brasileiro. Teoricamente, eram guerrilheiros de direita. Receberam refúgio do governo brasileiro. Ninguém, mas absolutamente ninguém, da grande imprensa fez qualquer comentário sobre isso, porque isso demonstraria não só a nossa postura acolhedora em relação a pessoas que cometem delitos políticos dentro da democracia – como ocorreu na Bolívia -, como também a isenção com que o Ministério da Justiça trata esses assuntos. Mas isso não aparece na imprensa, talvez porque acarrete a demolição da tese de que eu sou apenas um quadro de esquerda que está protegendo um presumido outro militante de esquerda.
Carta Maior: O editorial da revista Carta Capital desta semana afirma que uma possível saída jurídica para o presidente da República seria conceder asilo a Battisti. Existe essa possibilidade?
Tarso Genro: Pode ser uma saída. Eu não sei qual vai ser a decisão do presidente sobre o assunto. O presidente, quando decide sobre isso, decide não apenas sobre uma questão concreta, mas também sobre uma relação entre dois Estados. O refúgio é um ato administrativo do Ministro da Justiça, depois de passar pelo Comitê Nacional de Refugiados, que é deferido quando existe um certo temor de perseguição. Já o asilo político é uma decisão complexa, que passa pela Polícia Federal, pelo Ministro de Relações Exteriores, mas sempre deve refletir a determinação política do Presidente, que é o “chefe” direto da Política Externa, função diretamente vinculada à Constituição. Há uma legislação relacionada a essa decisão, mas o fundamento do asilo político está inscrito diretamente na Constituição e vem de um comando supremo de decisão política do presidente.
Carta Maior: Outro tema relacionado ao caso, mencionado pelos defensores da extradição, fala da possibilidade de uma grave crise diplomática entre o Brasil e a Itália, caso Battisti não for extraditado. Qual sua opinião sobre isso? Existe tal ameaça?
Tarso Genro: Isso é uma chantagem primária que já foi feita quando eu proferi meu despacho. São posições divulgadas para pressionar o presidente a ter medo de um conflito diplomático com a Itália e que prestigiam a grosseria de alguns ministros italianos quando se reportaram a juristas brasileiros e ao despacho do ministro da Justiça. É uma tentativa de intimidação dizer que haveria uma crise política. É como dizer ao presidente da República: não exerça a soberania, isso pode desgostar os outros. Esse tipo de argumento não ecoa na cabeça do presidente, que já deu demonstrações suficientes de que dirige o país exercitando a soberania nacional. O deferimento ou indeferimento da permanência de Battisti no país não será balizado por uma visão primária como essa.
Carta Maior: Na sua opinião, para além do debate jurídico em torno desse tema, o que esse caso mostra sobre o atual estágio da democracia brasileira e da qualidade do debate público sobre a democracia?
Tarso Genro: Posso dar um exemplo concreto. Na semana passada, foram divulgadas na imprensa – de uma maneira muito asséptica e cuidadosa, aliás – declarações de uma pessoa que teria conhecimento e participação direta ou indireta no esquartejamento do ex-deputado Rubens Paiva, que foi seqüestrado e assassinado na época do regime militar. Ele não teria sido assassinado por militares, mas sim por civis vinculados aos aparatos de repressão paralelos e ilegais que funcionavam naquela época e que eram tolerados e até estimulados pelos governantes de então. Não li nenhuma palavra sobre esse tema dos articulistas que defendem a extradição de Battisti. Nenhum juízo de valor, nenhum pedido para que a Justiça brasileira se mova para investigar esse fato, eventualmente punir os envolvidos, mesmo que seja para depois anistiar os cidadãos brasileiros que participaram desses órgãos repressivos e que, até hoje, não sofreram sequer uma advertência do Estado após a Lei da Anistia.
A anistia foi um momento importante na redemocratização do país, mas foi produto de um compromisso entre as elites políticas democráticas da época e as elites do regime militar. Esse compromisso vem sendo observado pelas sucessivas manifestações do Estado brasileiro até agora. O governo do presidente Lula está fazendo um esforço, através da Secretaria de Direitos Humanos, dirigida pelo ministro Paulo Vanuchi, e da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, para resgatarmos a memória daquele período e fazermos um pouco de Justiça.
O caso Battisti é emblemático, envolvendo uma tentativa de luta armada dentro de um regime democrático que, naquele momento, atravessava uma crise profunda. Ninguém discute, na Europa, se esses guerrilheiros, naquela época, eram guerrilheiros políticos ou não. A nossa legislação não exige que as pessoas não tenham participado de luta armada ou não tenham participado de atos violentos para conseguir refúgio. Ela exige que haja um certo temor de perseguição, de uma parte, e que o “crime” tenha sido de natureza política. Na verdade, o que está se discutindo nesta questão do sr. Battisti é muito mais do que sua extradição. Está se discutindo uma memória sobre os anos de chumbo na Itália e aqui no Brasil. Se observamos a posição da maioria dos cronistas que escrevem sobre o assunto, a maioria dos editoriais, veremos que são praticamente os mesmos textos e editoriais que são furibundos contra a política de cotas, que são contra que se processe os torturadores, que chamam as indenizações a prisioneiros, torturados e perseguidos políticos de gastos públicos inúteis. São os mesmos, aliás, que, em última análise, proferem as maiores ofensas contra quem defende uma posição diferente.
Durante todo esse debate, quando nomes como Celso Bandeira de Mello, Fábio Comparatto, José Afonso Silva e Dalmo Dallari falaram sobre o caso e quando eu falei por obrigação como ministro da Justiça e não como jurista do porte deles, nunca ofendemos ninguém, nunca atacamos ninguém, nunca desconstituímos pessoalmente ninguém. O que os defensores da extradição fazem contra quem tem uma posição contrária a essa é partir sempre para desqualificações e ofensas pessoais. Isso é um método para transformar um debate de opiniões e princípios em um debate burocrático sobre quem têm mais poder de violentar a opinião do outro. Trata-se, então, na verdade, de um debate entre o autoritarismo e a democracia, um debate entre concepções de Estado de Direito. Até hoje, também não se viu destas pessoas nenhum comentário sobre todas as decisões tomadas no Supremo que vão na mesma direção que defendemos. Não é feito, por exemplo, nenhum vínculo entre esse caso e o da Olga Benário, com exceção daquela carta da Anita. Eu não disse e não sustento que são casos iguais. Mas são casos análogos. Olga Benário também foi acusada de ter cometido ações militares e de ter baleado policiais. A extradição dela deu no que deu, em função de um exame burocrático, tecnicista e desumano da norma. Ou seja, em função de uma pré-compreensão de que era preciso aniquilar um determinado inimigo que estava ali presente naquela época; no caso, os comunistas.
Carta Maior: Um dos argumentos utilizados pelos defensores da extradição consiste em dizer que há uma grande unanimidade na Itália em torno dessa posição, incluindo aí a própria esquerda italiana. Qual sua posição sobre esse argumento?
Tarso Genro: A informação que tenho é que existe, sim, um sentimento majoritário na Itália a favor da extradição de Battisti. Isso está relacionado, ao meu ver, entre outras coisas, à cultura política italiana atual. É uma cultura política que tem origens profundamente democráticas que vem do Renascimento, do período da unificação nacional do país e das guerras de resistência ao fascismo. Mas que também está limitada por profundas derrotas políticas da esquerda italiana nos últimos tempos, que não lhe permitiu avançar com coerência dentro da democracia, conseguindo apresentar uma alternativa democrática, que ganhe politicamente e respeite o centro, como fizeram Lula e o PT aqui no país. Uma situação que levou a esquerda italiana a uma situação de total defensiva em relação aos valores tradicionais da esquerda democrática. Eu não acredito que a esquerda italiana ou a maioria do povo italiano tenha qualquer tipo de má fé neste caso, ou que estejam construindo uma posição para fazer uma vendetta. Acho que é um caldo sócio-cultural que explica essa posição majoritária. É certo, porém, que não há unanimidade.
Quando falei, recentemente, que havia algumas manifestações que expressavam posições de cunho fascista no espectro político italiano, aqui no Brasil houve uma insurreição e uma indignação expressas na maioria da mídia. A mesma indignação que faltou quando ministros italianos, que compõem o espectro da extrema direita, ofenderam gravemente juristas brasileiros e o próprio Estado brasileiro. Essas manifestações de virulência compõem um espectro político-ideológico que defende certos interesses. Um destes interesses é, efetivamente, que a grande mídia possa tutelar a democracia no Brasil a partir de seus valores que tem se chocado com os valores expressos pelo povo através das eleições democráticas. Isso, de um lado, faz parte do processo democrático, do exercício da liberdade de imprensa, que deve ser preservado, mas de outro, deve ser respeitado também nosso direito de responder a essa posição e fazer circular as nossas idéias de esquerda de maneira equânime.
O que está acontecendo é que esse setor da mídia não está aceitando que se conteste as suas posições. Ordinariamente, não publicam nossas respostas e, quando publicam, o fazem de uma maneira escondida, exercendo um autoritarismo burocrático sobre a formação da opinião. Isso não é nenhuma novidade. Há, hoje, um grande controle da mídia sobre a vida pública brasileira. É ela que faz a pauta dos partidos, é ela que faz a pauta dos parlamentos, é ela que interfere na pauta do Supremo, invadindo, inclusive, correspondência privada dos ministros. Mas creio que isso faz parte de um grande processo de reorganização democrática do país, e (a mídia) sequer deve ser demonizada em virtude dessas deformações, pois a liberdade de informar, mesmo deformadamente, é um bem maior que deve ser preservado, sob o risco da democracia sucumbir.
Carta Maior: Como fica a situação de Battisti agora? Segue preso aguardando a decisão presidencial?
Tarso Genro: Tecnicamente, sim. Pela informação que tenho, ele permanece em greve de fome que, na minha opinião, deveria suspender. Já manifestei essa posição publicamente. O presidente Lula também. A greve de fome é uma arma de um preso político. Battisti é um preso político no Brasil. E, na minha opinião, ele está preso ilegalmente, inclusive. Está sendo considerado como paciente de uma extradição comum, como um criminoso comum, não se dando a ele o direito de ser acolhido como refugiado, violando-se expressamente o texto legal que afirma que, quando é concedido o refúgio, interrompe-se o processo de extradição.
Entendo que essa posição do Supremo de não interromper o processo de extradição é ilegal. Mas quem, em última análise, deve dizer se é ilegal ou não é o próprio Supremo Tribunal Federal. Do ponto de vista formal, temos que respeitar e prestigiar a decisão do Supremo, pois é ele que dita a interpretação da lei em última instância. Isso não quer dizer que não possamos debater essa posição e, inclusive, criticá-la, pois ela vai mais além da situação do sr. Battisti, dizendo respeito à questão democrática no Brasil. O advogado de Battisti é que deve definir se vai pedir relaxamento de prisão, prisão domiciliar ou vai entrar com um habeas corpus tentando sua libertação. Não cabe ao Ministério da Justiça ter nenhuma intervenção sobre essa questão.
Carta Maior: Do ponto de vista jurídico a questão deveria obrigatoriamente chegar ao Presidente?
Tarso Genro: O único despacho que, se fosse respeitado pelo Supremo, não levaria o tema ao presidente da República, é o que dei concedendo o refúgio. Isso deixaria a questão de Battisti no âmbito do Ministério da Justiça, exclusivamente, sob minha responsabilidade e com o desgaste eventual que eu poderia ter, tomando essa decisão. Se eu tivesse indeferido a extradição, o advogado de Battisti poderia fazer um recurso hierárquico ao presidente da República. Com a decisão do Supremo, deu-se, na verdade, uma triangulação. O ministro da Justiça deu o despacho concedendo o refúgio. O Supremo disse que esse despacho era ilegal, anulou-o e concedeu a extradição. Mas, ao mesmo tempo, disse, corretamente, que o juízo final a respeito do assunto é do presidente da República. Tenho a impressão de alguém andou vendendo para os “formadores de opinião” a idéia de que o Supremo poderia “livrar” o Presidente de decidir sobre o assunto, como se o presidente fosse uma pessoa omissa, infensa a assumir responsabilidades inerentes ao seu cargo, o que seus sete anos de governo demonstram ser uma opinião equivocada e preconceituosa. Por convicção jurídica e postura política procurei uma solução definitiva com o meu despacho. A responsabilidade do assunto ter chegado ao primeiro magistrado da nação é de quem quis convencer o Supremo e a sociedade de que o STF poderia avançar sobre as prerrogativas do Presidente, violando a Constituição.
Fonte: Carta Maior(http://www.cartamaior.com.br/)
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