Ética, moralidade, fichas limpas e águas turvas
A protelação do projeto Ficha Limpa evidencia a falta de comprometimento de alguns deputados do país com a ética e a moralidade |
UM SENTIMENTO de frustração tomou conta da sociedade brasileira quando os deputados federais decidiram adiar para a primeira semana de maio a votação do projeto Ficha Limpa, que deveria ter ocorrido ontem.
A matéria foi discutida com todos os partidos políticos no grupo de trabalho que redigiu o substitutivo ao projeto. A protelação evidencia a falta de comprometimento de alguns deputados com a ética e a moralidade na vida política brasileira.
Não votar imediatamente esse projeto de lei equivale a derrotá-lo, pois amplia o risco de ele não ser colocado em prática ainda nessas eleições.
O exemplo dado pela Câmara dos Deputados é um triste sinal de que as mudanças requeridas pela população não encontram eco na Casa do povo.
A proposta, que visa tornar inelegíveis políticos condenados pela Justiça, é fruto de uma mobilização popular inédita no Brasil. Nada menos que 1,6 milhão de pessoas apoiaram e assinaram a proposta para que ela pudesse ser levada ao Congresso Nacional.
O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que congrega 44 entidades, inclusive a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), conseguiu levar adiante a bandeira inaugurada pelos magistrados brasileiros em 2006.
Nesse ano, a AMB lançou a campanha permanente Eleições Limpas -Pelo Voto Livre e Consciente, visando a tornar as disputas eleitorais transparentes, combater a corrupção e contribuir para que a ética seja o fio condutor de todos os que assumem cargos públicos, eletivos ou não.
A iniciativa nasceu em meio a escândalos de caixa dois em campanhas eleitorais e de pagamento de mensalão no Congresso, fatos que deixaram a população com um sentimento de descrença nas instituições públicas e que deram origem a um movimento em favor da anulação do voto.
A campanha Eleições Limpas foi uma reação concreta da magistratura aos escândalos emanados do Congresso Nacional e uma tentativa de mostrar à sociedade que, por meio do voto, é possível promover mudanças significativas no país.
A campanha conclamou juízes eleitorais e cidadãos a fiscalizar com rigor as eleições de 2006. Buscou orientar a sociedade sobre o que é permitido e o que é proibido no processo eleitoral.
Naquele ano, a AMB distribuiu 100 mil exemplares da cartilha "Operação Eleições Limpas - A Luta dos Juízes pela Ética da Política", além de 100 mil exemplares de tal cartilha adaptada para crianças.
Em 2008, ano de eleições municipais, a AMB retomou a luta por eleições limpas e transparentes. A entidade encomendou uma pesquisa ao instituto Vox Populi, que mostrou que, no Brasil, só 12% dos eleitores acreditam que a política é uma atividade na qual o povo é o principal beneficiado, enquanto outros 85% acham que, de modo geral, os políticos só atuam em causa própria.
O mesmo estudo mostrou que, para 52% dos pesquisados, as eleições no Brasil não são limpas. Outros 21% acham que é possível o político saber em quem cada eleitor votou.
Por isso, a principal ação da campanha em 2008 foi a realização de encontros dos juízes eleitorais com os cidadãos eleitores. Ao todo, 1.468 audiências públicas foram realizadas, voluntariamente, nos 26 Estados brasileiros e no Distrito Federal. Os encontros aconteceram em 961 das 2.988 zonas eleitorais do país.
Também teve grande notoriedade a divulgação, no site da entidade, da lista com os nomes dos candidatos com "ficha suja", que respondiam a processo por ação penal, de improbidade administrativa ou eleitoral.
A divulgação da lista, feita sem nenhum preconceito ou juízo de valor, teve o objetivo de facilitar o acesso da população e da imprensa a informações públicas e contribuir para que as eleições de 2008 transcorressem da maneira mais transparente possível.
Afinal, a transparência é a essência da democracia. E a informação, ingrediente indispensável para o exercício do voto livre e consciente.
Em 2010, a iniciativa pioneira da AMB colhe bons frutos. No início de março, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) editou resolução que obriga os candidatos, nas próximas eleições, a apresentar certidão criminal detalhada no momento de registro na Justiça Eleitoral. A resolução é resposta a uma petição levada pela AMB ao TSE em fevereiro do ano passado, como parte da campanha Eleições Limpas.
Soma-se à determinação a recente decisão do Conselho Nacional de Justiça de abrir ao público os dados do Cadastro Nacional de Condenados por Ato de Improbidade Administrativa. Com informações sobre processos penais e ações de improbidade administrativa, o eleitor pode escolher conscientemente em quem votar.
Para a AMB, o projeto Ficha Limpa deve ser levado o quanto antes ao plenário, mesmo que não haja consenso entre os deputados. A votação será nominal e representa um divisor de águas. Deixará claro quem prefere continuar nadando em águas turvas.
Ao eleitor caberá acompanhar o voto do seu deputado e saber se ele demonstra o comprometimento que a sociedade espera dele.
MOZART VALADARES PIRES , juiz de direito da 8ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Recife (PE), é presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Fonte: Folha de São Paulo e Blog do Fred
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