Quando o Supremo Tribunal Federal concedeu dois Habeas Corpus ao banqueiro Daniel Dantas ninguém teve dúvidas sobre a legitimidade do Judiciário para resolver a questão. A discussão girou em torno de saber se a decisão era justa ou não. O caso evidenciou que a área do Direito Penal está desarrumada. A constatação é do constitucionalista Luis Roberto Barroso.
Ao participar de um seminário realizado pela FGV Direito Rio, Barroso afirmou que o sistema precisa ser repensado. Para ele, a crise na área penal não é só normativa, mas filosófica. Quem acha que o Direito Penal que temos é bom, constata, tem de sair para defendê-lo. Quem acha que é ruim, tem de tentar mudar.
Em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, Barroso explicou que, ao contrário de outros ramos do Direito, a área penal ainda não passou por uma reformulação adequada. Para ele, a reformulação passa, entre outras coisas, pela valorização da atividade policial e dignificação do sistema penitenciário. “Se o sistema não funciona, não adianta dizer que a culpa é da Polícia. Todos nós fazemos parte de uma engrenagem”, diz.
O constitucionalista também entende que é preciso discutir a possibilidade de ter prisões separadas e de custo reduzido para crimes de baixa periculosidade. “Uma das dificuldades da condenação de criminosos do colarinho branco no Brasil é precisamente essa: não mandar para um sistema penitenciário degradado pessoas que não representam um risco do ponto de vista da violência.”
Barroso também acredita ser possível, embora difícil, que o juiz se atente para as consequências da decisão sem ser escravo da opinião pública. “Os juízes agem em nome do povo e do interesse da sociedade e devem satisfações a ela. Mas dever satisfações à sociedade não significa fazer o que não é certo. Significa fazer o que é certo com o dever de dizer o porquê, moralmente, aquela decisão é adequada, ainda que seja impopular”, explicou.
Leia a entrevista
Conjur — O que o senhor quis dizer ao afirmar que a área do Direito Penal está desarrumada?
Luis Roberto Barroso — Todos os ramos do Direito existem para realizar determinados fins e têm meios adequados para isso. O Direito Penal tem o fim de proteção da sociedade, respeitados os direitos fundamentais das pessoas, ideia essencial que também vale nas relações civis e administrativas. Nos últimos anos, os Direitos Constitucional e Civil foram rearrumados e o Direito Administrativo conciliou a perspectiva do direito do cidadão com o Estado.
Conjur — Faltou o Direito Penal?
Luis Roberto Barroso — Sim. Acho que temos problemas de naturezas filosófica e doutrinária e uma legislação defasada. Há dois extremos: de um lado, a impunidade e, de outro, um Estado autoritário. O Direito Penal não consegue cumprir o seu papel de prevenção geral e punição específica dos crimes quando eles efetivamente são cometidos. A impunidade não só fomenta o crime, como cria uma insatisfação social e uma descrença nas instituições que é sempre ruim. No extremo oposto, temos um Estado tradicionalmente autoritário e, muitas vezes violento e truculento. É a atitude de alguns segmentos que se incorpora no vingador mascarado, ou seja, daquele que se diz estar em nome do Bem e, portanto, pode prender, grampear arbitrariamente ou divulgar notícias sobre as pessoas de forma seletiva.
Conjur — Como alcançar o equilíbrio entre os dois extremos?
Luis Roberto Barroso — É preciso que a sociedade se sinta identificada com as instituições relacionadas ao Direito Penal. Filosoficamente, sou uma pessoa garantista, no sentido de que os direitos fundamentais devem ser sempre preservados. É preciso ter cuidado para não criminalizar a pobreza e para não exacerbar penas. Há também duas pontas no sistema punitivo brasileiro que precisam de atenção.
Conjur — Quais são elas?
Luis Roberto Barroso — É preciso investir na Polícia, a porta de entrada, e no sistema penitenciário, a porta de saída. A atividade policial precisa ser tratada com mais dignidade. Isso significa pagar e treinar bem, recrutar adequadamente e dar meios técnicos de atuação. A violência policial, muitas vezes, é fruto da falta de meios e de outros recursos de investigação. Há uma cultura brasileira que considera que a atividade policial é menor que a do Ministério Público e do Judiciário. É uma visão equivocada, porque somos um pacote. Se o sistema não funciona, não adianta dizer que a culpa é da Polícia. Todos nós fazemos parte de uma engrenagem.
Conjur — Como o senhor avalia o sistema penitenciário brasileiro?
Luis Roberto Barroso — O sistema penitenciário no Brasil é degradante. É tão perverso mandar alguém para esse sistema que os juízes com sensibilidade social maior procuram os caminhos mais variados em termos de interpretação jurídica para não ter de condenar alguém à prisão. Mandar alguém para o sistema penitenciário é quase como que perder essa pessoa para a vida civilizada. A pessoa não é só condenada a dois anos de prisão, mas à imundície, à violência sexual, às doenças. Se esse sistema não melhorar, vamos ter a atitude quase moral do juiz de só mandar para o sistema quem não tem nenhuma possibilidade de salvação. A pessoa condenada a uma pena privativa de liberdade deve cumprir uma pena privativa de liberdade e não uma pena de violências físicas.
Conjur — Há alternativa a esse sistema?
Luis Roberto Barroso — Acho que nós tínhamos que imaginar prisões separadas e de custo reduzido para crimes de baixa periculosidade, por exemplo, os de colarinho branco, e um sistema de prisão domiciliar monitorada. Se o condenado fugir da prisão de baixa periculosidade, talvez a consequência seria ir para o sistema geral. E, mesmo na hipótese de criminalidade violenta, é preciso dar dignidade às pessoas nos presídios. Tem de criar espaços em que o juiz não se sinta moralmente tolhido de condenar alguém. Houve um salto de qualidade no Ministério Público e na magistratura em geral. Mas se as duas pontas, a de entrada e a de saída, não estiverem funcionando, o sistema nunca vai atender adequadamente às demandas da sociedade brasileira.
Conjur — O senhor sugere prisões diferentes para pessoas com mais dinheiro?
Luis Roberto Barroso — Não. O critério não é a condição social e sim a natureza violenta ou não de um crime. Por exemplo, um estelionatário, pessoa humilde que vende terrenos na Lua, ficaria em um sistema de baixa periculosidade. Uma das dificuldades da condenação de criminosos do colarinho branco no Brasil é precisamente essa: não mandar para um sistema penitenciário degradado pessoas que não representam risco do ponto de vista da violência. Conheço juízes honestos, sérios e moralmente bem formados que relutam em mandar qualquer pessoa para os presídios mesmo em casos em que, se o sistema fosse adequado, a condenação deveria ocorrer.
Conjur — O senhor disse que as ideias e os valores não estão sendo compartilhados nas discussões sobre Direito Penal. Como é isso?
Luis Roberto Barroso — As pessoas brigam quando não conseguem conversar. Para que haja interlocução é preciso falar a mesma língua e compartilhar valores mínimos, a partir dos quais se constroem soluções. Acho que, em matéria de Direito Penal e de Direito Processual Penal, estamos enfrentando uma dificuldade de estabelecer quais são esses valores mínimos, a começar pela prisão cautelar abusiva para as câmeras de televisão. É uma prática que tem sido criticada pelo Supremo.
Conjur — O Supremo, pela maioria de seus ministros, entendeu que, mesmo condenado em primeira instância, o réu deve ficar em liberdade enquanto não for julgado o último recurso. Mas quatro ministros do STF e muita gente de respeito entederam que isso é um absurdo. Quem está com a razão?
Luis Roberto Barroso — São dois pontos de vista que podem ser sustentados. É preciso levar isso para um debate público democrático para saber qual é a solução que no Brasil, aqui e agora, atendem às demandas sociais. Quando eu falo em demandas sociais, refiro-me às demandas com o filtro dos direitos fundamentais. Não se pode ser populista nessa matéria, porque senão podemos cair em pena de morte e linchamento. Mas todas as áreas do Direito têm de ser capazes de dar satisfações à sociedade. O Direito não existe em si e para si, e sim para atender as demandas e as aspirações da sociedade. É preciso redefinir o Direito Penal, mas não de forma autoritária. Temos que fazer um debate do qual participem advogados criminais, membros do Ministério Público, magistrados e professores e tentar extrair denominadores comuns que permitam a reconstrução adequada desse sistema.
Conjur — O juiz pode estar atento às consequências de suas decisões sem ficar escravo da opinião pública como o senhor defende?
Luis Roberto Barroso — É possível, mas é difícil. O juiz não pode ser escravo da opinião pública, porque a solução justa e correta, muitas vezes, não é a solução popular. Mas, em um estado democrático, todo Poder é representativo. Portanto, os juízes também agem em nome do povo e do interesse da sociedade e devem satisfações a ela. Mas dever satisfações à sociedade não significa fazer o que não é certo. Significa fazer o que é certo com o dever de dizer por que, moralmente, a decisão é adequada, ainda que seja impopular.
Conjur — O Supremo tem justificado suas decisões?
Luis Roberto Barroso — No caso específico das decisões garantistas, o Supremo tem justificado e explicitado os limites de que a investigação não pode ser feita para a mídia; de que as pessoas não podem ser flagradas dentro de casa de pijama ou algemadas inutilmente. O STF tem tentado passar uma mensagem garantista e não truculenta do processo penal, que acho positiva.
Conjur — As decisões do STF têm sido compreendidas?
Luis Roberto Barroso — Não. O Supremo tem sido vítima de injusta incompreensão. Mas o debate público em uma sociedade democrática é sempre saudável. Uma das características da democracia é que ninguém é melhor do o outro e a autoridade deve satisfações à opinião pública. Eu me chateio quando a divergência política ou filosófica faz com que um dos interlocutores tente desqualificar moralmente o outro. Isso é ruim. É uma postura autoritária dizer que quem não pensa como eu é desonesto. O sujeito que pensa diferente de mim não é meu inimigo nem meu adversário, mas meu parceiro na construção de uma sociedade plural, em que os contrários convivem de maneira civilizada. Uma das poucas coisas no Brasil, hoje, que me trazem uma certa amargura é a dificuldade em se respeitar o outro na sua diferença, o que faz com que o interlocutor desqualifique o outro, depreciando-o moralmente, quando a questão não é moral.
Conjur — O senhor acredita que foi isso que aconteceu na discussão entre os ministros do Supremo, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa?
Luis Roberto Barroso — Não. Foi uma circunstância de um órgão colegiado em que a discussão foi exasperada. Houve uma troca de diálogos de pessoas que, em circunstâncias normais, não aconteceria. Mas isso faz parte de qualquer órgão colegiado. Eu não gostaria de super-valorizar o fato de que, no calor de uma discussão, alguém tenha produzido uma frase em um tom acima. Acho que isso não desqualifica nem a um nem a outro. Foi um mau momento e a vida não é só de bons momentos. Acho até que a troca de diálogos tem embutidas duas visões do Direito. E as duas têm lugar em um órgão colegiado e plural como é o Supremo.
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