O embate entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, no plenário do Supremo Tribunal Federal, prossegue em seus desdobramentos, que transbordam do âmbito judiciário e ganham o meio político. É que, por trás dele, há a percepção de que se está vivendo mais um capítulo de um fenômeno recente na vida institucional brasileira: a ideologização do Judiciário.
O debate ideológico direita-esquerda há muito contaminou o Judiciário e disso dão testemunho outros acontecimentos. Um deles, no final do ano passado, produziu outro fato inédito: um abaixo-assinado de juízes de primeira instância contra o mesmo Gilmar Mendes, quando este mandou soltar por duas vezes o banqueiro Daniel Dantas, acusado pela Operação Satiagraha, da Polícia Federal, e preso por ordem do juiz Fausto De Sanctis.
Tecnicamente, Mendes estava com a razão, tanto que o plenário do STF, por unanimidade, acolheu os dois habeas corpus concedido. Não havia indícios suficientes para que Dantas fosse preso antes de concluído o inquérito. Mas Mendes foi contestado menos pela decisão e mais pelas declarações que sobre ela proferiu, em sucessivas entrevistas, altamente críticas ao Ministério Público, à Polícia Federal e ao juiz encarregado do caso. Deixou patente que fatores não jurídicos haviam contaminado o processo.
O estilo Mendes, de falar fora dos autos, não foi inaugurado por ele. Antes, Nélson Jobim e Marco Aurélio Mello já o haviam exercitado. Mas Mendes levou o procedimento ao paroxismo. Fez críticas à Polícia Federal, ao Ministério Público e ao governo. Falou como político e sustentou o seu direito de fazê-lo, como presidente de um dos poderes do Estado.
Com isso, passou a colecionar inimigos, dentro e fora da magistratura. Egresso do Ministério Público, considerou que o controle externo que este exerce sobre a Polícia Federal “é fictício” e que é necessário criar um órgão de controle efetivo, para impedir excessos como o da Operação Satiagraha. Chegou a propor que o Conselho Nacional de Justiça, órgão que ele preside, o fizesse.
Meteu também a mão noutro vespeiro: a crise social no campo. Considerou irregular que o governo continue a repassar recursos a uma entidade como o Movimento dos Sem-Terra (MST), que, além de não ter personalidade jurídica (é sustentada por ONGs), promove ilícitos, como o de violar propriedades privadas, mesmo quando estas são claramente produtivas. O Planalto não gostou e Lula deu o troco, ao comentar seu embate com Joaquim Barbosa. Disse que um juiz deve falar nos autos e não pela imprensa.
Mendes, nomeado em 2002 por Fernando Henrique, é politicamente conservador. Justifica seu comportamento como reação à ideologização do Judiciário, que já teria começado há bem mais tempo – e pela esquerda. Atitudes como a do juiz Fausto De Sanctis, que, mesmo sem ter função de comando, dá entrevistas, palestras e justifica a violação da Constituição como necessária para fazer a “verdadeira justiça”, chegando mesmo a citar um jurista que serviu ao nazismo, Carls Schimtt, estariam a exigir reação forte dentro do próprio Judiciário. Daí o contraponto que faz.
Joaquim Barbosa, que, como Mendes, é também egresso do Ministério Público, encarnaria o juiz de esquerda. Alguns de seus votos e de suas declarações à imprensa – ele também é um juiz midiático – dão respaldo à afirmação. Numa delas, disse o seguinte:
“Há uma coisa que me perturba, que me deixa desconfortável aqui no tribunal e na Justiça brasileira como um todo. É o fato de que certas elites, certas categorias monopolizam, sim, a agenda dos tribunais. Isso não quer dizer que eu esteja de acordo com a frase de que o tribunal favorece as elites. Monopolizam a agenda.”
Na discussão com Mendes, mais uma vez a divergência ideológica foi posta em pauta. Mendes o acusou de julgar conforme a classe social. Ele desafiou Mendes a “ir às ruas”, o que reforça a insinuação que lhe fazem alguns colegas de ser um “juiz populista”. Barbosa tem ainda contra si o fato de possuir temperamento explosivo, sujeito a cenas freqüentes como a que protagonizou contra Mendes.
Já se indispôs no STF com alguns colegas e com pelo menos três não troca sequer cumprimentos: além de Mendes, Eros Graus e Marco Aurélio Mello. Mantém fortes vínculos com o Ministério Público, cujas ações, tão criticadas por Mendes, recebem seu irrestrito apoio. É um dos sete ministros nomeados por Lula e visto pelos partidos de esquerda e pelos movimentos sociais como um “juiz do povo”.
O duelo com Mendes, se o enfraqueceu internamente, reforçou sua popularidade, aumentando a carga crítica articulada por esses mesmos setores contra Mendes, o que mantém o Judiciário no centro do debate ideológico que o contamina – e enfraquece.
Ruy Fabiano é jornalista
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