Concluído o julgamento do famoso caso Raposa-Serra do Sol (demarcação de terras indígenas em Roraima), mais uma vez entrou em pauta o tema do "ativismo judicial", visto que o ministro Menezes Direito sugeriu a imposição de 19 medidas para a implementação da demarcação contínua. De ativismo judicial já se falou também quando o Supremo Tribunal Federal (STF) impôs a fidelidade partidária, o direito de greve no serviço público, a proibição do nepotismo, o uso restrito das algemas, etc.
Judicialização não se confunde com ativismo judicial. A judicialização nada mais expressa que a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário, que é permitido a todos contra qualquer tipo de lesão ou ameaça a um direito. Outra coisa bem distinta é o "ativismo judicial". Há várias espécies de ativismo judicial. Aqui destaco três delas: ativismo em favor dos direitos constitucionais, ativismo judicial legislativo e proativismo judicial.
No ativismo pró-direitos fundamentais, o juiz adota postura ativa em favor da concretização dos direitos e das garantias do cidadão. Atua por conta própria, proativamente. Exemplo: todas as vezes que o juiz ou o tribunal concede um habeas corpus de ofício ele atua por conta própria, em favor da liberdade individual. Esse ativismo é distinto da judicialização, porque nesta o juiz assume atitude passiva (ne procedat iudex ex officio).
O ativismo judicial foi mencionado pela primeira vez em 1947, pelo jornalista norte-americano Arthur Schlesinger, numa interessante reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos. Para o jornalista, caracteriza-se ativismo judicial quando o juiz se considera no dever de interpretar a Constituição no sentido de garantir direitos que ela já prevê, como, por exemplo, direitos sociais ou econômicos.
Mas existe outro tipo de ativismo judicial - o ativismo judicial legislativo - que consiste em o juiz tangenciar a atividade legislativa para complementar o ordenamento jurídico, ou seja, para dar os contornos finais do Direito. O STF está fazendo disso uso constante nas suas súmulas vinculantes.
No ativismo judicial que complementa o Direito há uma espécie de intromissão do Judiciário na função legislativa. O juiz, nesse caso, revela (a palavra está sendo utilizada sem conotação religiosa) o Direito existente no ordenamento jurídico. Ele ativa o sentido e a extensão de um princípio, por exemplo. Do princípio democrático de que todo o poder emana do povo o Supremo Tribunal Federal extraiu a regra da fidelidade partidária, que impede o político de mudar de partido injustificadamente depois da eleição. Essa regra não estava expressamente prevista, mas latente, no ordenamento.
Uma terceira espécie de ativismo judicial ainda pode ser destacada. Neste caso, o juiz assume uma postura legiferante inovadora, ex novo, ou seja, aqui o Judiciário inova o ordenamento jurídico. Invade totalmente a função legislativa. Trata-se de um proativismo, visto que o juiz se antecipa ao legislador do futuro e cria, ele mesmo, uma nova regra, que não pode ser inferida de nenhuma outra fonte normativa existente. No proativismo, o juiz muda, por conta dele, o rumo do ordenamento.
O Judiciário brasileiro já fez isso várias vezes. Foi no século passado, especificamente na década de 60, que reconheceu pela primeira vez o direito de meação da concubina, depois inventou a prisão-albergue, etc.
Quais seriam as razões do ativismo judicial no Brasil? O professor Luís Roberto Barroso, de Direito Constitucional, invoca duas: a nova composição do STF, por ministros bastante preocupados com a concretização dos valores e princípios constitucionais, e a crise de funcionalidade do Poder Legislativo, que estimula tanto a emissão de medidas provisórias pelo Executivo como o ativismo ou o proativismo do Judiciário. Todo poder, quando não exercido ou quando não bem exercido, deixa vácuo e sempre existe alguém pronto para preencher esse espaço vazio por ele deixado.
Qual é o problema de todo ativismo judicial legislativo ou proativismo? Está no risco de o Poder Judiciário perder sua legitimidade democrática, que é indireta. Em que sentido? As decisões dos juízes são democráticas na medida em que seguem, nas decisões judiciais, aquilo que foi aprovado pelo legislador. Sempre que o Poder Judiciário inova o ordenamento jurídico, criando regras antes desconhecidas, invade a tarefa do Poder Legislativo, ou seja, intromete-se na função legislativa. Disso emerge um outro risco: o da aristocratização do Estado e do Direito, que, certamente, ninguém no século 21 está disposto a aceitar.
Há outros riscos: se os magistrados do STF, um dia, só por hipótese, se engajarem nas ondas involutivas do Estado de polícia, surge também a ameaça de "hitlerização do Direito" (direito nazista). Se conferirem primazia a uma determinada religião, em detrimento das regras jurídicas, há o risco da "fundamentalização do Direito" (direito fundamentalista). Se não observarem nenhuma regra vigente no momento das decisões, pode-se chegar à "alternativização do Direito" (direito alternativo). O Direito construído pelo STF, de outro lado, pode resultar absurdamente "antigarantista" - aliás, essa é a censura que muitos já estão fazendo em relação à Súmula Vinculante nº 5, que dispensa a presença de advogado nos processos disciplinares.
O que podem fazer os magistrados do STF para evitar os riscos inerentes ao ativismo judicial? Mais cultura constitucional, mais filosofia jurídica e, acima de tudo, vigilância permanente no seu "autocontrole". O self-restaint deve conduzir tais juízes à ponderação, ao equilíbrio e à reflexão.
*Luiz Flávio Gomes , doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, professor e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG, foi promotor de Justiça (1980-1983), juiz de Direito (1983-1998)
e advogado (1999-2001)
quinta-feira, 11 de junho de 2009
STF - ativismo sem precedentes?
Por: Luiz Flávio Gomes
Fonte: Estado de São Paulo 30/05/09
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