sábado, 20 de fevereiro de 2016

Entrevista ao vivo no JPB 1ª Edição, da TV Paraíba.



http://g1.globo.com/pb/paraiba/jpb-1edicao/videos/t/edicoes/v/pesquisa-ibope-aponta-qual-problema-mais-preocupa-os-brasileiros/4784963/

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Pedro Serrano fala ao Justificando sobre o Judiciário como agente do Estado de Exceção


No Justificando Entrevista dessa semana recebemos o Jurista Pedro Estevam Serrano para uma conversa sobre Política, Judiciário e Mídia. Serrano lançou recentemente o livro O Justiça na Sociedade do Espetáculono qual reúne uma série de textos escritos ao longo de sua carreira.

A entrevista que durou em torno de vinte minutos, aborda a tese do Jurista sobre atuação do Judiciário como agente da exceção. Isto mesmo, aquele que seria o garantidor de direitos e aplicador das leis está se comportando justamente como o Poder que suspende garantias individuais. Serrano explica a ideia da "exceção": "uma força política que ingressa nas relações jurídicas entre Estado e pessoa para suspender o Direito e fazer valer uma soberania absoluta".  

Segundo ele, o Judiciário pode atuar de duas formas quanto à exceção. A forma secundária, porém permanente, que ocorre no Poder Judiciário - na prática juízes, promotores e advogados - chancela a exceção imposta pela política policial do Estado brasileiro em periferias e favelas:

"Há um Estado de Exceção Permanente em relação à pobreza, que tem os seus direitos à circulação suspensos - depois das onze horas ninguém circula na periferia;  tem o seu direito à livre expressão suspenso, veja a repressão ao funk. E quando há o suspeito de ser o tal do 'inimigo', o tal do 'bandido' tem o direito à integridade física e à vida suspensos. Direito à defesa não existe - 40% dos aprisionados no Brasil, quarta maior população aprisionada no mundo, são presos sem direito de defesa em celas e cadeias medievais". 

"Nesse aspecto, o Judiciário é um dos agentes (da exceção). O agente principal é a PM (Polícia Militar), mas o Judiciário consolida isso, por exemplo, quando apriosiona 40% das pessoas com ordens cautelares e não com ordens definitivas. O Juiz e o Promotor acabam sendo agentes desse estado de exceção também. Agentes secundários nesse tipo de questão" - completou.

A outra forma de atuação como agente da exceção ocorre quando o Judiciário decide interromper o ciclo democrático e agir contra à Constituição. Essa forma de exceção tem tido uma certa força na América Latina, com dois casos que aconteceram há pouco tempo em Honduras e Paraguai.

"(Nesse caso) tem o Judiciário ou como agente da decisão de interromper o ciclo democrático ou como agente que legitimou a decisão de impechment de interrupção". 

Em Honduras, o Presidente Zelaya chegou a ser expulso do país, em decisão frontalmente contrária à Constituição do país - a Corte, posteriormente não só anulou a expulsão, como também o próprio impeachment, mas apenas anos depois de ele já ter sido tirado do poder. No Paraguai, por exemplo, o processo de impeachment teve duas horas de defesa e pouquíssimas oportunidades para fazê-la. O caso foi tão gritante que há mais garantias em se defender de uma multa de trânsito do que se defender de um golpe.

No Brasil, para Serrano o Mensalão acendeu o "farol amarelo", quando suspenderam o direito de defesa, por condenar uma série de pessoas sem provas, muito por causa da relação perniciosa entre Justiça em Mídia. "Você substitui a lógica do Direito, que é a do lícito e do ilícito por uma lógica do notícia e não-notícia".

A entrevista ainda abordou sobre as oscilações do Judiciário brasileiro quando atua como um "garantidor de direitos", ao que Serrano atribuiu considerou esse comportamento errático do avanço como até onde a elite e mídia razoavelmente aceitam. 

"O voto do Ministro Barroso foi um exemplo disso. Ele faz discurso muito bom, uma justificação muito boa, que aponta para o sentido de descriminalizar o porte para uso de substâncias entorpecentes, ou seja, que favorece as pessoas no direito de propriedade mais essencial, que é o direito de propriedade do próprio corpo; e no final ele vai restringir só para a maconha. Então ele fez um discurso muito bonito, mas uma decisão ruim, na minha opinião, porque ao invés de obedecer a Constituição, preferiu mediar com a mídia e a opinião publicada". 

Ou seja, para Serrano o Supremo Tribunal Federal tem sido errático quanto à dialética entre exceção e Constituição. Já a primeira e segunda instância, ou seja, demais juízes do Brasil, a postura que tem prevalecido é a da exceção:  "O Judiciário Penal de primeira instância, majoritariamente, é uma força de exceção para recriminar e punir a pobreza".

Fonte: http://justificando.com/2015/09/30/pedro-serrano-fala-ao-justificando-sobre-o-judiciario-como-agente-do-estado-de-excecao/

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Placar no STF está em 3x0 para descriminalização de drogas


O STF retomou na tarde desta quinta-feira, 10, o julgamento do RExt no qual se discute a constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas (11.343/06), que tipifica como crime o porte de drogas para consumo pessoal.

Na sessão de hoje, votaram os ministros Edson Fachin, que apresentou voto-vista, e o ministro Luís Roberto Barroso, ambos pela descriminalização, julgando inconstitucional o artigo 28. Após os votos, o ministro Teori Zavascki pediu vista.

O relator do caso, ministro Gilmar Mendes também já votou pela inconstitucionalidade do dispositivo entendendo que ele viola o princípio da proporcionalidade. Seu voto foi proferido no dia 20/8. Para o ministro, a punição do usuário é desproporcional, ineficaz no combate às drogas, e ofende o direito constitucional à personalidade. Em seu voto, no entanto, o ministro afastou apenas os efeitos penais da conduta, mantendo, "até o advento de legislação específica", as punições de ordem administrativa (multa).

Veja a íntegra do voto do ministro Gilmar Mendes.

Confira o voto do ministro Edson Fachin.

http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI226686,81042-Ministros+Fachin+e+Barroso+votam+pela+descriminalizacao+do+porte+de

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Voto do ministro Gilmar Mendes a favor da descriminalização

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 635.659 SÃO PAULO

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Trata-se de recurso extraordinário, com repercussão geral, em que se alega a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, que define como crime “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, com sujeição às seguintes penas: “I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”

Prevê a norma impugnada, ainda, que se submete às mesmas medidas “quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.” (art. 28, §1º).

Afirma o recorrente que a criminalização da posse de drogas para consumo pessoal viola o art. 5º, X, da Constituição Federal, no qual se prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Sustenta, em síntese, que o dispositivo constitucional em destaque protege as escolhas dos indivíduos no âmbito privado, desde que não ofensivas a terceiros. Decorreria dessa proteção, portanto, que determinado fato, para que possa ser definido como crime, há de lesionar bens jurídicos alheios. Sublinha, ademais, que as condutas descritas no art. 28 da Lei de Drogas pressupõe a não irradiação do fato para além da vida privada do agente, razão pela qual não resta caracterizada lesividade apta a justificar a edição da norma impugnada.

Em resposta ao recurso, argumenta o Ministério Público, em resumo, que, ao contrário do que alega o recorrente, o bem jurídico tutelado pelo dispositivo em análise é a saúde pública, visto que a conduta daquele que traz consigo droga para uso próprio contribui, por si só, para a propagação do vício no meio social.

Cabe observar que não é a primeira vez que o dispositivo impugnado é trazido a julgamento pelo Plenário desta Corte. Em virtude de não constar, entre as sanções previstas para as referidas condutas, pena privativa de liberdade, sustentou-se, em Questão de Ordem no Recurso Extraordinário 430.105, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, que essa opção legislativa configuraria abolitio criminis.

Assentou a Corte, naquela oportunidade, contudo, que a supressão da pena privativa de liberdade para as condutas relacionadas à posse de drogas para uso pessoal não desfigura a natureza penal das condutas ali tipificadas, conforme ementa a seguir transcrita:

“I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 – nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas”, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão “reincidência”, também não se pode emprestar um sentido “popular”, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, 2 Em elaboração RE 635659 / SP do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de “despenalização”, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado. (RE 430105 QO/RJ, Relator Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 13.2.2007, Primeira Turma, DJ 27.4.2007)”.

No caso agora em análise, o art. 28 é impugnado sob o enfoque de sua incompatibilidade com as garantias constitucionais da intimidade e da vida privada. Não se funda o recurso na natureza em si das medidas previstas no referido artigo, mas, essencialmente, na vedação constitucional à criminalização de condutas que diriam respeito, tão somente, à esfera pessoal do agente incriminado.

Feitos esses esclarecimentos, prossigo no exame do recurso.

  1. Controle de constitucionalidade de normas penais: parâmetros e limites.

O tema em debate traz a lume contraposições acerca da proteção a direitos fundamentais. De um lado, o direito coletivo à saúde e à segurança; de outra parte, o direito à intimidade e à vida privada. Nessa perspectiva, cabe examinar, como premissa de julgamento da norma impugnada, os parâmetros e limites do controle de constitucionalidade de leis penais, em especial daquelas cujo perfil protetivo tenha por finalidade a contenção de riscos, abstratamente considerados, a bens jurídicos fundamentais.

A Constituição de 1988 contém diversas normas que determinam, expressamente, a criminalização de um amplo elenco de condutas, conforme se observa nos seguintes incisos do art. 5º: “XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;”.

No mesmo sentido, o art. 7º, inciso X, ao assegurar, em favor dos trabalhadores urbanos e rurais, a proteção do salário na forma da lei, estabelece, expressamente, que “constitui crime sua retenção dolosa”. De igual modo, prevê o art. 227, § 4º, da Constituição, que “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.” Da mesma forma, estabelece o art. 225, § 3º, que “As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”

É possível identificar, em todas essas normas, um mandado de criminalização dirigido ao legislador, tendo em conta os bens e valores objeto de proteção.

Em verdade, tais disposições traduzem importante dimensão dos direitos fundamentais, decorrente de sua feição objetiva na ordem constitucional. Tal concepção legitima a ideia de que o Estado se obriga não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face do Poder Público, como, também, a garantir os direitos fundamentais contra agressão de terceiros.

Os direitos fundamentais não podem, portanto, ser considerados apenas como proibições de intervenção. Expressam, igualmente, um postulado de proteção. Utilizando-se da formulação de CANARIS, pode-se dizer que os direitos fundamentais contemplam não apenas uma proibição de excesso (Übermassverbote), como, também, uma proibição de proteção insuficiente (Untermassverbote). (CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen und Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS 1989, p. 161 (163).

Sob esse ângulo, é fácil ver que a ideia de um dever genérico de proteção, fundado nos direitos fundamentais, relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos sobre toda a ordem jurídica.

Assim, ainda que não se reconheça, em todos os casos, uma pretensão subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocamente, a identificação de um dever estatal de tomar as providências necessárias à realização ou concretização dos direitos fundamentais.

Nessa linha, as normas constitucionais acima transcritas explicitam o dever de proteção identificado pelo constituinte, traduzido em mandados de criminalização expressos, dirigidos ao legislador.

Registre-se que os mandados de criminalização expressos não são uma singularidade da Constituição brasileira. Outras constituições adotam orientações assemelhadas (Constituição espanhola, art. 45, 1, 2 e 3; art. 46, c, e art. 55; Constituição italiana, art. 13; Constituição da França, art. 68; Lei Fundamental da Alemanha, art. 26, I). É inequívoco, porém, que a Constituição brasileira de 1988 adotou, muito provavelmente, um dos mais amplos, senão o mais amplo catálogo de mandados de criminalização expressos de que se tem notícia.

Por outro lado, além dos mandados expressos de criminalização, a ordem constitucional confere ao legislador margens de ação para definir a forma mais adequada de proteção a bens jurídicos fundamentais, inclusive a opção por medidas de natureza penal.

Nesse contexto, a tipificação penal de determinadas condutas pode conter-se no âmbito daquilo que se costuma denominar de discrição legislativa. Cabe ressaltar, todavia, que, nesse espaço de atuação, a liberdade do legislador estará sempre limitada pelo princípio da proporcionalidade, configurando a sua inobservância inadmissível excesso de poder legislativo.

A doutrina identifica como típicas manifestações de excesso no exercício do poder legiferante a contraditoriedade, a incongruência, a irrazoabilidade ou, em outras palavras, a inadequação entre meios e fins. A utilização do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso no direito constitucional envolve, assim, a apreciação da necessidade e adequação da providência adotada.

Essa orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (Gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos, como, igualmente, a adequação dos meios para a consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização.

De um lado, a exigências de que as medidas interventivas se mostrem adequadas ao cumprimento dos objetivos pretendidos. De outra parte, o pressuposto de que nenhum meio menos gravoso revelar-se-ia igualmente eficaz para a consecução dos objetivos almejados. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo pretendido puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele, a um só tempo, adequada e menos onerosa.

Com isso, abre-se a possibilidade do controle da constitucionalidade material da atividade legislativa também em matéria penal. Nesse campo, o Tribunal está incumbido de examinar se o legislador utilizou de sua margem de ação de forma adequada e necessária à proteção dos bens jurídicos fundamentais que objetivou tutelar.

Nessa linha, é possível identificar, a partir da jurisprudência sedimentada pela Corte Constitucional alemã, três níveis de controle de intervenção ou restrição a direitos fundamentais dos quais se podem extrair importantes balizas no controle da constitucionalidade de leis penais.

No famoso caso Mitbestimmungsgesetz (1978 BVerfGE 50, 290), a Corte Constitucional distinguiu os seguintes graus de intensidade no controle de constitucionalidade das leis: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); e c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle).

No primeiro nível, o controle realizado pelo Tribunal deve reconhecer ao legislador uma ampla margem de avaliação, valoração e conformação quanto às medidas que reputar adequadas e necessárias. A norma somente poderá ser declarada inconstitucional quando as medidas adotadas pelo legislador se mostrarem claramente inidôneas para a efetiva proteção do bem jurídico fundamental.

O Tribunal deixou ressaltado, contudo, que “a observância da margem de configuração do legislador não pode levar a uma redução do que, a despeito de quaisquer transformações, a Constituição pretende garantir de maneira imutável, ou seja, ela não pode levar a uma redução das liberdades individuais que são garantidas nos direitos fundamentais individuais, sem as quais uma vida com dignidade humana não é possível, segundo a concepção da Grundgesetz” ( BVerfGE 50, 290).

Essa ampla liberdade de conformação pode ser controlada pelos tribunais somente de maneira restrita, dependendo da peculiaridade da matéria, das possibilidades de formação de um juízo suficientemente seguro e do significado dos bens jurídicos em jogo.

Desse modo, a Corte alemã fixou o entendimento no sentido de que a admissão de uma reclamação constitucional pressupõe a demonstração, “de maneira concludente, de que o Poder Público não adotou quaisquer medidas preventivas de proteção, ou que evidentemente as regulamentações e medidas adotadas são totalmente inadequadas ou completamente insuficientes para o alcance do objetivo de proteção.”

Assim, o controle de evidência em matéria penal haverá de ser exercido com cautela, de forma a não malferir a ampla margem de avaliação, valoração e conformação conferida ao legislador. Nesse sentido, uma eventual declaração de inconstitucionalidade deve fundamentar-se em inequívoca inidoneidade das medidas adotadas em face dos bens jurídicos objeto da proteção penal.

No segundo nível, o controle de justificabilidade está orientado a verificar se a decisão legislativa foi tomada após uma apreciação objetiva e justificável de todas as fontes de conhecimento então disponíveis (BVerfGE 50, 290).

No caso Mühlenstrukturgesetz (BVerfGE 39, 210), o Tribunal Constitucional assentou esse entendimento nos seguintes termos:

“O exame de constitucionalidade compreende primeiramente a verificação de se o legislador buscou inteirarse, correta e suficientemente, da situação fática existente à época da promulgação da lei. O legislador tem uma ampla margem de avaliação (discricionariedade) na avaliação dos perigos que ameaçam a coletividade. Mesmo quando, no momento da atividade legislativa, parece remota a possibilidade da ocorrência de perigos para um bem coletivo, não é defeso ao legislador que tome medidas preventivas tempestivamente, contanto que suas concepções sobre o possível desenvolvimento perigoso no caso de sua omissão, não se choquem de tal sorte com as leis da ciência econômica ou da experiência prática, que elas não possam mais representar uma base racional para as medidas legislativas [BVerfGE 25, 1 (17); 38, 61 (87)]. Nesse caso, deve-se partir fundamentalmente de uma avaliação de relações (dados da realidade social) possível ao legislador quando da elaboração da lei [BVerfGE 25, 1 (12 s.)]”.

Nesse segundo nível, portanto, o controle de constitucionalidade estende-se à questão de se verificar se o legislador levantou e considerou, diligente e suficientemente, todas as informações disponíveis, e se realizou prognósticos sobre as consequências da aplicação da norma. Enfim, se o legislador valeu-se de sua margem de ação de maneira sustentável.

No âmbito desse denominado controle de justificabilidade (ou de sustentabiliadde), assumem especial relevo as técnicas procedimentais postas à disposição do Tribunal e destinadas à verificação dos fatos e prognoses legislativos, como a admissão de amicus curiae e a realização de audiências públicas, previstas em nosso ordenamento jurídico pela Lei 9.868/99.

Em verdade, como venho afirmando em estudos doutrinários sobre o tema, no controle abstrato de normas, não se procede apenas a um simples contraste entre a disposição do direito ordinário e os princípios constitucionais. Ao revés, também aqui fica evidente que se aprecia a relação entre a lei e o problema que se lhe apresenta em face do parâmetro constitucional. Em outros termos, a aferição dos chamados fatos legislativos constitui parte essencial do controle de constitucionalidade, de modo que a verificação desses fatos relaciona-se íntima e indissociavelmente com a própria competência do Tribunal.

No âmbito do controle de constitucionalidade em matéria penal, deve o Tribunal, portanto, na maior medida possível, inteirar-se dos diagnósticos e prognósticos realizados pelo legislador na concepção de determinada política criminal, pois do conhecimento dos dados que serviram de pressuposto da atividade legislativa é que é possível averiguar se o órgão legislador utilizou-se de sua margem de ação de maneira justificada.

No terceiro nível, o controle material intensivo aplica-se às intervenções legislativas que, a exemplo das leis penais, por afetarem intensamente bens jurídicos de extraordinária importância, como a liberdade individual, devem ser submetidas a um controle mais rígido por parte do Tribunal.

Assim, quando estiver evidente a grave afetação de bens jurídicos fundamentais de suma relevância, poderá o Tribunal desconsiderar as avaliações e valorações fáticas realizadas pelo legislador para, então, fiscalizar se a intervenção no direito fundamental em causa está devidamente justificada por razões de extraordinária importância. Esse terceiro nível de controle foi explicitado pela Corte Constitucional alemã na célebre decisão Apothekenurteil (BVerfGE 7, 377, 1958), em que se discutiu o âmbito de proteção do direito fundamental à liberdade de profissão. O Tribunal assim fixou seu entendimento:

“As limitações ao poder regulamentar, que são derivadas da observância do direito fundamental, são mandamentos constitucionais materiais que são endereçados, em primeira linha, ao próprio legislador. Sua observância deve ser, entretanto, fiscalizada pelo Tribunal Constitucional Federal. Se uma restrição da livre escolha profissional estiver no último degrau (dos pressupostos objetivos de sua admissão), o Tribunal Constitucional Federal deve primeiro examinar se um bem jurídico coletivo prevalecente está ameaçado e se a regulamentação legislativa pode mesmo servir à defesa contra esse perigo. Ele deve, além disso, também examinar se justamente a intervenção perpetrada é inevitavelmente ordenada para a proteção do referido bem; em outras palavras, se o legislador não poderia ter efetivado a proteção com regulamentações de um degrau anterior”.

A Corte reconheceu, nesse caso, a difícil legitimação de um controle de constitucionalidade a esse nível, visto que isso demandaria um amplo conhecimento de todas as relações sociais a serem ordenadas, como, também, de todas as possibilidades da legislação.

É com base nessa concepção que pretendem, por vezes, limitar a competência da Corte Constitucional, sob o argumento de que o Tribunal, por causa da utilização de uma ampla competência de exame, interferiria na esfera do legislador e, com isso, se chocaria contra o princípio da divisão de poderes.

Sobre o ponto, a Corte assim se manifestou:

“Ao Tribunal foi atribuída a proteção dos direitos fundamentais em face do legislador. Quando da interpretação de um direito fundamental resultarem limites ao legislador, o tribunal deve poder fiscalizar a observância deles por parte dele, legislador. Ele não pode subtrair-se à esta tarefa se não quiser, na prática, desvalorizar em grande parte os direitos fundamentais e acabar com a sua função atribuída pela Grundgesetz. A exigência frequentemente feita nesse contexto segundo o qual o legislador deveria, entre vários meios igualmente adequados, livremente decidir, não resolveria o problema ora em pauta. (…). Nesse caso, o legislador encontra-se, entretanto, dentro de determinados limites, livre para a escolha entre várias medidas legislativas igualmente adequadas, vez que elas todas atingem o mesmo direito fundamental em seu conteúdo único e não diferenciado. Não obstante, em se tratando de um direito fundamental que encerra em si zonas mais fortes e mais fracas de proteção da liberdade, torna-se necessário que a jurisdição constitucional verifique se os pressupostos para uma regulamentação estão presentes no degrau onde a liberdade é protegida ao máximo. Em outras palavras, necessário se faz que se possa avaliar se medidas legislativas no degrau inferior não teriam sido suficientes, ou seja, se deste modo a intervenção perpetrada fosse inexoravelmente obrigatória. Se se quisesse deixar ao legislador também a escolha entre os meios igualmente adequados, que correspondessem a degraus diferentes uns dos outros, isso acarretaria que justamente intervenções que limitem ao máximo o direito fundamental seriam, em razão de seu efeito muito eficaz para o alcance da meta almejada, as mais frequentes escolhidas e seriam aceitas sem exame. Uma proteção efetiva da área de liberdade, que o Art. 12 I GG pretende proteger com mais ênfase, não seria, destarte, mais garantida”.

Nesse terceiro nível, o Tribunal examina, portanto, se a medida legislativa interventiva em dado direito fundamental é necessariamente obrigatória, do ponto de vista da Constituição, para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes. O controle, aqui, há de ser bem mais rígido, pois o Tribunal adentra o próprio exame da ponderação de bens e valores realizada pelo legislador.

Assim, no controle material intensivo de normas de natureza penal, cabe ao tribunal verificar se a medida penal que, prima facie, constitui uma intervenção em determinado direito fundamental mantém relação de SP proporcionalidade com as metas estabelecidas pela política criminal considerada.

  1. Considerações sobre os crimes de perigo abstrato

A partir da perspectiva aqui delineada, e tendo em conta que o principal argumento em favor da criminalização de condutas relacionadas ao consumo pessoal de drogas assenta-se no dano em potencial que essas condutas irradiam na sociedade, colocando em risco a saúde e a segurança públicas, é importante que se considerem algumas nuances dos denominados crimes de perigo abstrato.

Apesar da existência de ampla controvérsia doutrinária, os crimes de perigo abstrato podem ser identificados como aqueles em que não se exige nem a efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma, nem a configuração do perigo em concreto a esse bem jurídico. Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico.

Baseado em dados empíricos, seleciona grupos ou classes de condutas que geralmente trazem consigo o indesejado perigo a algum bem jurídico fundamental.

Assim, os tipos de perigo abstrato descrevem ações que, segundo a experiência, produzem efetiva lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico digno de proteção penal, ainda que concretamente essa lesão ou esse perigo de lesão não venham a ocorrer.

O legislador formula, dessa forma, uma presunção absoluta a respeito da periculosidade de determinada conduta em relação ao bem jurídico que pretende proteger. O perigo, nesse sentido, não é concreto, mas apenas abstrato. Não é necessário, portanto, que, no caso concreto, a lesão ou o perigo de lesão venham a se efetivar. O delito estará consumado com a mera conduta descrita na lei penal.

Cabe observar que a definição de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato acaba se mostrando, muitas vezes, como alternativa mais eficaz para a proteção de bens supraindividuais, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde pública, entre outros. A antecipação da proteção penal em relação à efetiva lesão torna, assim, mais eficaz a proteção de bens dessa natureza.

Portanto, pode o legislador, dentro de suas margens de avaliação e de decisão, definir as medidas mais adequadas e necessárias à efetiva proteção de bens jurídicos supraindividuais, o que lhe permite optar por um direito penal nitidamente preventivo.

Por outro lado, não é difícil entender as características e os contornos da delicada relação entre os delitos de perigo abstrato e os princípios da lesividade ou ofensividade, os quais, por sua vez, estão intrinsecamente relacionados com o princípio da proporcionalidade. A atividade legislativa de produção de tipos de perigo abstrato deve, por isso, ser objeto de rígida fiscalização a respeito de sua constitucionalidade.

Nesse sentido, relembro, aqui, dois precedentes desta Corte em que condutas tipificadas como crimes de perigo abstrato foram valoradas sob o enfoque do princípio da proporcionalidade.

No RE 583.523, com repercussão geral, de minha relatoria (j. 13.10.2013, Tribunal Pleno), em que declarada, por unanimidade, a inconstitucionalidade da criminalização da posse não justificada de instrumento de emprego usual na prática de furto (artigo 25, do DecretoLei n. 3.688/1941), ressaltei em meu voto que a norma não se mostrava adequada, porque não protegia de maneira ótima o direito fundamental ao patrimônio e à incolumidade pública, na medida em que se restringia, de forma discriminatória, às pessoas descritas no tipo (vadio ou mendigo, bem como reincidente em crime de furto ou roubo, ou sujeito à liberdade vigiada).

Também assentei que a medida não se mostrava necessária, porque poderia ser suprida por medidas alternativas que favorecessem, ainda mais, a proteção aos bens jurídicos que se pretendeu resguardar. Por fim, acentuei que a contravenção penal em questão violava o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, visto que a punição de uma conduta apenas quando realizada por pessoas determinadas segundo critérios discriminatórios era inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção.

Na ADI 3112/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski (j. 2.5.2007, Tribunal Pleno), na qual se alegava a inconstitucionalidade de diversos dispositivos do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2013), restou assentado, após juízo de ponderação com base no princípio da proporcionalidade, que a proibição de fiança para os delitos de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo” mostrava-se desarrazoada, por se tratar de crimes de mera conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade. Por outro lado, entendeu a Corte que a identificação das armas e munições, de modo a permitir o rastreamento dos respectivos fabricantes e adquirentes, cuidava-se de medida que não se mostrava irrazoável.

Nos dois precedentes, diante das circunstâncias específicas do caso concreto trazido a julgamento, coube à Corte aferir o grau potencial de lesão ao bens jurídicos que se buscou tutelar por meio do direito penal.

Estou certo de que essas devem ser as premissas para a construção de um modelo rígido de controle de constitucionalidade de leis em matéria penal, fundado no princípio da proporcionalidade.

Antes, contudo, de adentrar o exame da norma impugnada, cabem, aqui, algumas considerações acerca do diversificado leque de políticas regulatórias em relação à posse de drogas para uso pessoal.

  1. Posse de drogas para consumo pessoal: políticas regulatórias

A criminalização do porte de drogas para uso pessoal tem sido objeto de acirradas discussões, caracterizadas por uma exacerbada polarização entre proibição e legalização. Desvia-se, com isso, de questões essenciais ao debate. Por essa razão, mostra-se pertinente que se clarifiquem alguns conceitos para uma melhor compreensão das diversas práticas regulatórias em relação ao tema.

Em primeiro lugar, entende-se por proibição o estabelecimento de sanções criminais em relação à produção, distribuição e posse de certas drogas para fins não medicinais ou científicos. É esse o termo utilizado pelo regime internacional de controle de drogas, fundado nas Convenções capitaneadas pela ONU, assim como pelas legislações domésticas. Quando falamos em proibição, estamos nos referindo, portanto, a políticas de drogas essencialmente estruturadas por meio de normas penais.

Em posição menos rígida na escala das políticas adotadas, convencionou-se denominar de despenalização a exclusão de pena privativa de liberdade em relação a condutas de posse para uso pessoal, bem como em relação a outras condutas de menor potencial ofensivo, sem afastá-las, portanto, do campo da criminalização. É esse o modelo adotado pelo art. 28 da Lei 11.343/2006, objeto deste recurso.

Encontramos, mais adiante, na escala de opções regulatórias, a denominada descriminalização, termo comumente utilizado para descrever a exclusão de sanções criminais em relação à posse de drogas para uso pessoal. Sob essa acepção, embora a conduta passe a não ser mais considerada crime, não quer dizer que tenha havido liberação ou legalização irrestrita da posse para uso pessoal, permanecendo a conduta, em determinadas circunstâncias, censurada por meio de medidas de natureza administrativa.

Subjacente ao processo de descriminalização, vem se multiplicando, em muitos países, com o apoio da ONU, a adoção de programas e de práticas que visam mitigar as consequências sociais negativas decorrentes do consumo de drogas psicoativas, legais ou ilegais. A essa prática tem se atribuído a denominação de políticas de redução de danos e de prevenção de riscos.

Quando se cogita, portanto, do deslocamento da política de drogas do campo penal para o da saúde pública, está se tratando, em última análise, da conjugação de processos de descriminalização com políticas de redução e de prevenção de danos, e não de legalização pura e simples de determinadas drogas, na linha dos atuais movimentos de legalização da maconha e de leis recentemente editadas no Uruguai e em alguns Estados americanos.

Feitas essas considerações, passemos à análise da norma impugnada à luz do princípio da proporcionalidade, mediante exame de sua adequação e necessidade.

  1. Adequação da norma impugnada: controle de evidência e de justificabilidade

Conforme já observamos, na aferição de constitucionalidade de norma restritiva de direitos fundamentais, cabe examinar, inicialmente, se as medidas adotadas pelo legislador mostram-se idôneas à efetiva proteção do bem jurídico fundamental (controle de evidência) e se a decisão legislativa foi tomada após apreciação objetiva e justificável das fontes de conhecimento então disponíveis (controle de justificabilidade).

  • Controle de evidência

O art. 28 da Lei 11.343/2006 está inserido no Título III do referido diploma legal, sob o qual se encontram agrupadas as disposições atinentes às “atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”.

Por outro lado, as condutas descritas no art. 28 foram também definidas como crime no art. 33 da referida Lei, no rol das condutas relativas ao tráfico. O art. 33, por sua vez, está inserido no Título IV do texto legal, no conjunto das disposições alusivas à “produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”.

O traço distintivo entre os dois dispositivos, no que diz respeito aos elementos de tipificação das condutas incriminadas, reside na expressão “para uso pessoal”, contida na redação do art. 28, caput. Objetivou o legislador, como se percebe, conferir tratamento penal diferenciado a usuários e traficantes, abolindo, em relação àqueles, a pena privativa de liberdade prevista no diploma legal revogado (Lei 6.368/76, art. 16).

Todavia, deflui da própria política de drogas adotada que a criminalização do porte para uso pessoal não condiz com a realização dos fins almejados no que diz respeito a usuários e dependentes, voltados à atenção à saúde e à reinserção social, circunstância a denotar clara incongruência em todo o sistema.

Os objetivos do sistema nacional de políticas sobre drogas (SISNAD), em relação a usuários e dependentes, estão assim estruturados na Lei 11.383/2006:

“Art. 18. Constituem atividades de prevenção do uso indevido de drogas, para efeito desta Lei, aquelas direcionadas para a redução dos fatores de vulnerabilidade e risco e para a promoção e o fortalecimento dos fatores de proteção. Art. 19. As atividades de prevenção do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes: II – a adoção de conceitos objetivos e de fundamentação científica como forma de orientar as ações dos serviços públicos comunitários e privados e de evitar preconceitos e estigmatização das pessoas e dos serviços que as atendam; III – o fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas; V – a adoção de estratégias preventivas diferenciadas e adequadas às especificidades socioculturais das diversas populações, bem como das diferentes drogas utilizadas; Art. 20. Constituem atividades de atenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas. Art. 21. Constituem atividades de reinserção social do usuário ou do dependente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas direcionadas para sua integração ou reintegração em redes sociais”.

Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais do porte de drogas para uso pessoal, a mera previsão de condutas referentes ao consumo pessoal como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional.

Esse quadro decorre, sobretudo, da seguinte antinomia: a Lei 11.343/2006 conferiu tratamento distinto aos diferentes graus de envolvimento na cadeia do tráfico (art. 33, §4º), mas não foi objetiva em relação à distinção entre usuário e traficante. Na maioria dos casos, todos acabam classificados simplesmente como traficantes.

Cabe citar, sobre esse aspecto, denso estudo sobre a recorrente situação de pessoas presas em flagrante na posse de drogas (Tráfico e Constituição: um estudo sobre a atuação da justiça criminal do Rio de Janeiro e de Brasília no crime de tráfico de drogas. Revista Jurídica, Brasília, v. 11, n. 94, 1-29, jun/set 2009, publicação quadrimestral da Presidência da República). Segundo a pesquisa, na qual foram examinadas 730 sentenças condenatórias pelo crime de tráfico de entorpecentes no período de outubro de 2006 a maio de 2008, por volta de 80% das condenações decorreram de prisões em flagrante, na maioria das vezes realizadas pela polícia em abordagem de suspeitos na rua (82% dos casos), geralmente sozinhos (cerca de 60%) e com pequena quantidade de droga (inferiores a 100g).

Outro dado interessante é que, em apenas 1,8% dos casos da amostra, houve menção ao envolvimento do acusado com organizações criminosas. A pesquisa constatou, também, uma considerável presença de jovens e adolescentes nas ocorrências. A maioria dos apreendidos (75,6%) é composta por jovens na faixa etária entre 18 e 29 anos. Verificou-se, ainda, que 62,1% das pessoas presas responderam que exerciam alguma atividade remunerada – formal ou informal. Revela a pesquisa, também, que 57% das pessoas não tinham nenhum registro em sua folha de antecedentes. O padrão de abordagem é quase sempre o mesmo: atitude suspeita, busca pessoal, pequena quantidade de droga e alguma quantia em dinheiro. Daí pra frente, o sistema repressivo passa a funcionar de acordo com o que o policial relatar no auto de flagrante, já que a sua palavra será, na maioria das vezes, a única prova contra o acusado. Não se está aqui a afirmar que a palavra de policiais não mereça crédito. O que se critica é deixar exclusivamente com a autoridade policial, diante da ausência de critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante, a definição de quem será levado ao sistema de Justiça como traficante, dependendo dos elementos que o policial levar em consideração na abordagem de cada suspeito. Nesse sentido, merecem destaque as seguintes conclusões da referida pesquisa: “Conforme confirmado na análise qualitativa de sentenças, os policiais são os responsáveis pela montagem das provas a serem apresentadas nos processos, e quase nunca são questionados em juízo. São eles as únicas testemunhas dos fatos delituosos arroladas na denúncia. Por outro lado, os juízes, de forma quase idêntica, citam julgados para fundamentar a sentença no sentido de prevalecer a palavra do policial para embasar a condenação do acusado. O baixo número de absolvições em primeira instância também comprova essa tese. (…) Sob esse aspecto [seletividade do sistema penal], o formato da lei penal parece contribuir para tal ocorrência, quando estabelece tipos abertos e penas desproporcionais, pois concede amplos poderes ao policial, tanto para optar entre a tipificação do uso e do tráfico, como ao não diferenciar entre as diversas categorias de comerciantes de drogas”. Em estudo mais recente, realizado com base em 667 autos de prisão em flagrante na cidade de São Paulo, os resultados obtidos são bastante similares ((JESUS, Maria Gorete Marques, OI, Amanda Hidelbrand e ROCHA, Thiago Thadeu da, Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo  sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, 2011). A partir dos resultados da pesquisa, notou-se um certo padrão nos flagrantes por tráfico de drogas. Na sua maioria, os flagrantes são realizados pela Polícia Militar, em via pública e em patrulhamento de rotina, prende-se apenas uma pessoa por ocorrência e há apenas o testemunho da autoridade policial que efetuou a prisão. Revela a pesquisa que a média de apreensão foi de 66.5 gramas de droga.

Constatou-se, ainda, que os autuados representam uma parcela específica da população: jovens entre 18 e 29 anos, pardos e negros, com escolaridade até o primeiro grau completo e sem antecedentes criminais. Além disso, respondem ao processo com privação da liberdade. Com os dados apresentados, alerta a pesquisa ao final, in verbis: “Apesar de a nova lei não dispor sobre o modo de atuação das polícias no combate ao tráfico de drogas, a questão que se coloca diz respeito à eficiência, à eficácia, aos custos e às consequências desse modelo posto em prática. Esta estratégia de combate, expressa de forma ambígua no sentimento colocado por grande parte dos profissionais entrevistados – ‘enxugar gelo, mas necessária’ -, além de ter se mostrado ineficiente, pois ‘após apreendidos, os jovens são logo substituídos por um exército de reserva’, produz apenas o aumento da massa carcerária, aprofundando a crise do já fracassado sistema carcerário”. Diante desse quadro, é inevitável a conclusão de que a incongruência entre a criminalização de condutas circunscritas ao consumo pessoal de drogas e os objetivos expressamente estabelecidos pelo legislador em relação a usuários e dependentes, potencializada pela ausência de critério objetivo de distinção entre usuário e traficante, evidencia a clara inadequação da norma impugnada e, portanto, manifesta violação, sob esse aspecto, ao princípio da proporcionalidade.

4.2. Controle de justificabilidade

Em relação à justificabilidade da medida adotada pelo legislador, cabe observar, inicialmente, que não existem estudos suficientes ou incontroversos que revelem ser a repressão ao consumo o instrumento mais eficiente para o combate ao tráfico de drogas. Pelo contrário, apesar da denominada “guerra às drogas”, é notório o aumento do tráfico nas últimas décadas. Por outro lado, em levantamento realizado em 2012 em cerca de 20 países que adotaram, nas últimas duas décadas, modelos menos rígido no diz respeito à posse de drogas para uso pessoal, por meio de despenalização ou de descriminalização, constatou-se que em nenhum deles houve grandes alterações na proporção da população que faz uso regular de drogas. A comparação entre países pesquisados demonstra que a criminalização do consumo tem muito pouco impacto na decisão de consumir drogas (ROSMARIN, A. & EASTWOOD, N, A quiet revolution: drug decriminalization polices in practice across the globe. Release Drugs: London, 2012).

No mesmo sentido, estudos publicados pelo Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Dependência (EMCDD), tem revelado que a prevalência do consumo de drogas decorre de um conjunto muito mais amplo de fatores entre os quais a criminalização tem pouco influência (EMCCDA, Anual Report on the state of the drugs prolem in Europe, 2011). Em Portugal, cuja política em relação a usuários tem sido citada como modelo, a descriminalização ocorreu em 2001 e possou a ser adotada uma serie de medidas não penais, como restrição do exercício de determinadas atividades, multas e o encaminhamento para tratamento. A pessoa flagrada com drogas para uso pessoal tem a droga apreendida e é notificada a comparecer a uma das Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência, de abrangência nacional, vinculadas ao Ministério da Saúde e responsáveis pela operacionalização da Lei da Descriminalização (Lei nº 30/2000). Essas Comissões, integradas por profissionais de áreas como saúde, assistência social, psicologia e direito, acolhem os indiciados notificados pelas forças de segurança e procedem a uma avaliação rigorosa de sua situação face ao consumo, valorizando suas necessidades psicossociais, sem descurar da premência de aproximar os consumidores de drogas ilícitas dos serviços de saúde (síntese de informações colhidas do SICAD, órgão oficial do governo português sobre políticas nessa área, em www.sicad.pt, 15.8.2015). Em entrevista ao Diário de Notícias de Portugal, edição de 25.4.2011, o presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), João Goulão, faz um balanço “muito positivo” da lei em vigor desde 1 de Julho de 2001, dez anos, portanto, após a descriminalização do consumo de drogas naquele país.

Afirmou ele, verbis: “Hoje temos 40 mil toxicodependentes em tratamento, em todo o País. É um número recorde de pessoas em tratamento e simboliza uma enorme evolução. Quando comecei nesta área, há 20 anos, o estigma social era tão forte que as pessoas nem davam o seu nome completo aos técnicos.” Aduz que dos doentes em tratamento, cerca de 10% são usuários de ‘cannabis’, vulgarmente conhecida por “erva”. E complementa: “Antes da descriminalização do consumo não tínhamos consumidores de ‘cannabis’ em tratamento. Agora, quando confrontados pelos técnicos das comissões, acabam por perceber que fumar ‘cannabis’ tem consequências para a saúde e aceitam o tratamento.” Em 10 anos, afirma que se verificou-se, também, uma “descida do consumo de substâncias ilícitas nos jovens com idades entre os 15 e os 19 anos” Além disso, esclarece que “na última década o principal grupo de infectados com o vírus VIH/sida deixou de ser o dos toxicodependentes para passar a ser o dos heterossexuais e dos homossexuais”. Ainda que se tratem de estudos e informações relativamente recentes, não é difícil constatar que os dados disponíveis à época da edição da norma não indicavam, com razoável margem de segurança, a sustentabilidade da incriminação, conforme se observa das justificativas agregadas ao Projeto de Lei 7.134/02, transformado na atual Lei de Drogas (Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, Parecer do Relator, Deputado Paulo Pimenta): “Em análise de mérito, cumpre fazer uma breve abordagem sobre a questão das drogas no país. A demanda e a oferta de drogas, no Brasil, são consideradas questões de Estado, em razão de seus impactos negativos nas instituições nacionais e nas relações sociais em suas diversas modalidades. Afetam, dentre outros, a saúde, a segurança, o trabalho, a previdência social, o bem-estar individual, a família e, até mesmo, alguns aspectos da soberania nacional.

Dados do I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, que envolveu as 107 maiores cidades do país, realizado, em 2001, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas da Universidade Federal de São Paulo, apontaram que “19,4% da população pesquisada já fez uso na vida de drogas (…) O uso na vida da maconha aparece em primeiro lugar entre as drogas ilícitas com 6,9% dos entrevistados (….) Entre os medicamentos usados sem receita médica, os benzodiazepínicos (ansiolíticos) tiveram uso na vida de 3,3%”.

O crescimento significativo do consumo de drogas no Brasil vem sendo observado, quando se comparam levantamentos nacionais de diferentes períodos feitos entre estudantes brasileiros do ensino fundamental e médio. De 1987 a 1997, o uso na vida de maconha passou de 2,8 para 7,6%, o de cocaína subiu de 0,5% para 2% e o de anfetamínicos de 2,8% a 4,4%. Não propriamente crescimentos explosivos, mas marcantes. O número de ocorrências de delitos envolvendo drogas também tem aumentado. Dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública registram 79.791 ocorrências no ano de 2001, 81.132 em 2002 e, apenas no primeiro semestre de 2003, 42.569. A Polícia Federal apreendeu, em 2003, 7,4 toneladas de cocaína e 164 toneladas de maconha, além de ter efetuado 2.969 prisões de traficantes e 61 de consumidores.

O uso indevido de drogas implica, quase sempre, em contato precoce com o mundo da ilegal idade e da violência e deixa, por vezes, um legado de sofrimento e vulnerabilidade social para o indivíduo e sua família. O Brasil vive, hoje, um momento de mudança, com sua atenção voltada à parcela da população que vive em condições de exclusão social. Nesse contexto, as políticas voltadas para a maior qualidade de vida do cidadão ganham relevância e destaque na agenda do Governo e na pauta dos assuntos defendidos por esta Casa. Um dos temas de maior premência é a questão do uso indevido e do tráfico ilícito de drogas. A maior parte dos dispositivos que regulam as atividades de redução da demanda e da oferta de drogas no Brasil datam de 1976 – Lei n° 6.368, de 1976 –, nada obstante tenham ocorrido alterações em seu texto original, introduzidas pela Lei n ° 10.409, de 2002.

A legislação brasileira sobre drogas constitui-se, portanto, em documento elaborado há mais de vinte e cinco anos, em uma realidade diversa dos momentos atuais, nos aspectos políticos, culturais, econômicos e sociais do País, em especial no que se refere à garantia de direitos dos cidadãos brasileiros. Nesses quase trinta anos que se passaram, o avanço do conhecimento científico, aliado aos novos contornos assumidos pelo fenômeno da droga, nos cenários nacional e mundial, tornaram ultrapassados os conceitos e métodos utilizados na abordagem do tema. De uma visão meramente médico-policial, o uso indevido e o tráfico ilícito de drogas passaram a ser tratados como questões de alta complexidade, relacionadas à saúde pública, à segurança e ao bem-estar social. O texto da Lei n° 6.368, de 1976, guarda anacronismos e conceitos controversos, quando confrontados com o momento político-social do País, em que a sociedade é conclamada a compartilhar, com o Estado, a responsabilidade pelas políticas sociais e a atuar na plena observância dos direitos essenciais da pessoa. Nesse aspecto, ressalte-se a qualificação similar dada ao usuário ou dependente de drogas e ao traficante, igualmente tratados, na Lei 6.368, como criminosos com pena restritiva de liberdade, desconsiderando-se as motivações originais de cada situação.

O usuário ou dependente de drogas, antes de se constituir um contraventor, deve ser visto como uma pessoa com vulnerabilidades de fundo individual e social, que não pode ser confundida com a figura do traficante. Merece, para si e para sua família, atenção à saúde e oportunidades de inserção ou reinserção social”. Como se percebe, não há, na justificativa do Projeto de Lei, nenhuma referência a dados técnicos quanto à correlação entre o porte para uso pessoal e a proteção aos bens jurídicos que se pretendeu tutelar. Pelo contrário, o próprio Relatório, ao reconhecer o usuário como vítima do tráfico, “uma pessoa com vulnerabilidade”, merecendo, “para si e para a sua família, atenção à saúde e oportunidade de inserção ou reinserção social”, evidencia nítida contrariedade entre meios e fins. Conforme assinala GUIMARÃES, ao comentar a tramitação do Projeto que resultou na atual Lei de Drogas: “[…] do tratamento eminentemente penal do fenômeno do uso que ia inscrito no art. 16 da Lei 6.368/76, passou o legislador para uma solução ambígua, em que as condutas conducentes ao uso são tratadas no capítulo referido aos crimes, mas em vez de sujeitarem o autor a sanções penais, levaram-no a medidas de caráter educativo [..]”(GUIMARÃES, Isaac Sabbá, Lei de Drogas comentada: crimes e regime processual penal, 6ª ed. Curitiba: Juruá, 2013, p. 28). A observação do autor reveste-se de pertinência quando lembra que o legislador, em evidente incoerência em suas escolhas, deu, inclusive, a impressão de que havia de fato optado por um regime não punitivo de tratamento da posse para uso pessoal, visto que, na redação original do Projeto, havia a previsão de “medidas educativas”, denominação que acabou substituída por “penas” na redação final da Lei. E talvez por equívoco, até deixou escapar, no §6º do art. 28, a expressão “medida  educativa” no lugar de “pena”. Diante desse quadro, resta suficientemente claro que a criminalização de condutas adstritas ao consumo pessoal de drogas mostra-se, também nesse plano, em manifesta dissonância com o princípio da proporcionalidade. 5. Necessidade da norma impugnada: controle material de intensidade No plano da necessidade, cabe examinar, conforme já observado, se a medida legislativa interventiva em dado direito fundamental mostra-se necessária, do ponto de vista da Constituição, para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes. Quando se discute a utilização do Direito Penal como instrumento de repressão à posse de drogas para consumo pessoal, questiona-se sobre a existência de bem jurídico digno de proteção nesse campo, tendo em vista tratar-se de conduta que causaria, quando muito, dano apenas ao usuário e não a terceiros. Em contraste com esse entendimento, levanta-se a tese de que a incriminação do porte de droga para uso pessoal se justificaria em função da expansibilidade do perigo abstrato à saúde. Nesse contexto, a proteção da saúde coletiva dependeria da ausência de mercado para a traficância. Em outras palavras, não haveria tráfico se não houvesse consumo. Além disso, haveria uma relação necessária entre tráfico, consumo e outros delitos, como crimes contra o patrimônio e violência contra a pessoa. Temos em jogo, portanto, de um lado, o direito coletivo à saúde e à segurança públicas e, de outro lado, o direito à intimidade e à vida privada, que se qualificam, no caso da posse de drogas para consumo pessoal, em direito à autodeterminação. Nesse contexto, impõe-se que se examine a necessidade da intervenção, o que significa indagar se a proteção do bem jurídico coletivo não poderia ser efetivada de forma menos gravosa aos precitados direitos de cunho individual.  Cabe ressaltar que não se cuida, aqui, de ignorar os riscos e malefícios associados ao uso de drogas, mas em examinar se a restrição penal mostra-se, neste contexto, inexoravelmente necessária. Para isso, é preciso que se avaliem, a partir de aportes teóricos sobre restrições a direitos fundamentais em situações de aparente conflito, a intensidade da intervenção e os fundamentos que a justificaram (proporcionalidade em sentido estrito). O exercício dos direitos pode dar ensejo, muitas vezes, a uma série de conflitos com outros direitos constitucionalmente protegidos. Daí a importância da noção de âmbito ou núcleo de proteção dos direitos fundamentais. Alguns autores chegam a afirmar que o âmbito de proteção é aquela parcela da realidade que o constituinte houve por bem definir como objeto de proteção especial, “aquela fração da vida protegida por uma garantia fundamental” (PEIROTH, Bodo e SCHLINK, Bernhard, Direitos Fundamentais, Trad. António Francisco de Sousa e António Franco, São Paulo: Saraiva, 2011/Série IDP). Nesse sentido é imperioso que se identifique não só o objeto da proteção, mas também contra que tipo de agressão ou restrição se outorga essa proteção. Quanto mais amplo for o âmbito de proteção de um direito fundamental, tanto mais se afigura possível qualificar qualquer ato do Estado como restrição. Ao revés, quanto mais restrito for o âmbito de proteção, menor possibilidade existe para a configuração de um conflito entre o Estado e o indivíduo. Não raro, a definição do âmbito de proteção de certo direito depende de uma interpretação sistemática, abrangente de outros direitos e disposições constitucionais. Muitas vezes, a definição do âmbito de proteção somente há de ser obtida em confronto com eventual restrição a esse direito. Tudo isso demonstra que a identificação precisa do âmbito de proteção de determinado direito fundamental exige um renovado e constante esforço hermenêutico. Não há dúvida de que a ideia de restrição leva, aparentemente, à identificação de duas situações distintas: o direito e a restrição.  Se direito fundamental e restrição são duas categorias que se deixam distinguir lógica e juridicamente, então existe, em tese, um direito não limitado, que, com a imposição de restrições, converte-se num direito limitado. Essa teoria, chamada de teoria externa, admite que, entre a ideia de direito e a ideia de restrição, inexiste uma relação necessária. Essa relação seria estabelecida pela necessidade de compatibilização concreta entre os diversos tipos de direitos fundamentais (ALEXY, Robert, Theorie der Grundrechte, p. 250). A essa concepção contrapõe-se a chamada teoria interna, para a qual não existem os conceitos de direito e de restrição como categorias autônomas, mas sim a ideia de direito fundamental com determinado conteúdo. A ideia de restrição é substituída pela de limite. Tal como ressaltado por ALEXY, eventual dúvida sobre o limite do direito não se confunde com a dúvida sobre a amplitude das restrições, mas diz respeito ao próprio conteúdo do direito (idem, 250). Cogita-se aqui dos chamados limites dos limites, que balizam a ação do legislador quando restringe direitos individuais. Esses limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas (PEIROTH, Bodo e SCHLINK, Bernhard, ob. cit). Alguns ordenamentos constitucionais consagram expressamente a proteção do núcleo essencial, como se lê no art. 19, II, da Lei Fundamental alemã, que estabelece que “em nenhum caso poderá ser um direito fundamental violado em sua essência”. Essa cláusula configura uma tentativa de fornecer resposta ao poder quase ilimitado do legislador no âmbito dos direitos fundamentais, tal como amplamente reconhecido pela doutrina até o início do século passado. A proteção dos direitos realizava-se mediante a aplicação do princípio da legalidade da Administração e dos postulados da reserva legal e da supremacia da lei. Isso significava que os direitos fundamentais submetidos a uma reserva legal poderiam ter a sua eficácia completamente esvaziada pela  ação legislativa (THOMAS, Richard, Grundrechte und Polizeigewalt, in TRIEPEL, Heinrich [Org.], Festgabe zur Feier des funfzigsjährigen Bestehens des Preussischen Oberverwaltungsgerichts, 1925, p. 183-223, 191 e s.; e ANSCHUTZ, Gerhard, Die Verfassung des Deutschen Reichs vom 11 August 1919, 14. ed., Berlin, 1933, p. 517 e s). Tentou-se contornar o perigo do esvaziamento dos direitos de liberdade pela ação do legislador democrático com a doutrina das garantias institucionais, segundo a qual determinados direitos concebidos como instituições jurídicas deveriam ter o mínimo de sua essência garantido constitucionalmente. A falta de mecanismos efetivos de controle de constitucionalidade das leis – somente em 1925 reconheceu o Reichsgericht a possibilidade de se proceder ao controle de constitucionalidade do direito ordinário – e a ausência de instrumentos asseguradores de efetividade dos direitos fundamentais em face dos atos administrativos contribuíam ainda mais para a onipotência do legislador. A Lei Fundamental alemã declarou expressamente a vinculação do legislador aos direitos fundamentais (LF, art. 1, III), estabelecendo diversos graus de intervenção legislativa no âmbito de proteção desses direitos. No art. 19, II, consagrou-se, por seu turno, a proteção do núcleo essencial. Essa disposição, que pode ser considerada uma reação contra os abusos cometidos pelo nacional-socialismo, atendia também aos reclamos da doutrina constitucional da época de Weimar, que ansiava por impor limites à ação legislativa no âmbito dos direitos fundamentais. (Von Mangoldt/Franz Klein, Das Bonner Grundgesetz, cit., 2. ed., 1957, art. 19, nota V 4; Ludwig Schneider, Der Schutz des Wesensgehalts von Grundrechten nach, art. 19, II, GG, Berlin: Duncker & Humblot, 1983, p. 189 e s). Na mesma linha e por razões assemelhadas, a Constituição portuguesa e a Constituição espanhola contêm dispositivos que limitam a atuação do legislador na restrição ou conformação dos direitos fundamentais (cf. Constituição portuguesa de 1976, art. 18º, n. 3, e Constituição espanhola de 1978, art. 53, n. 1).  Há de ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais. Cabe assinalar que o significado de semelhante cláusula e da própria ideia de proteção do núcleo essencial não é unívoco na doutrina e na jurisprudência. No âmbito da controvérsia sobre o núcleo essencial, suscitam-se indagações expressas em dois modelos básicos: 1) Os adeptos da chamada teoria absoluta entendem o núcleo essencial dos direitos fundamentais como unidade substancial autônoma que, independentemente de qualquer situação concreta, estaria a salvo de eventual decisão legislativa. Essa concepção adota uma interpretação material segundo a qual existe um espaço interior livre de qualquer intervenção estatal. Em outras palavras, haveria um espaço que seria suscetível de limitação por parte do legislador e outro seria insuscetível de limitação. Neste caso, além da exigência de justificação, imprescindível em qualquer hipótese, ter-se-ia um “limite do limite” para a própria ação legislativa, consistente na identificação de um espaço insuscetível de regulação (HESSE, Grunzuge des Verfassungsrechts, cit., p. 134). 2) Por outro lado, os defensores da chamada teoria relativa entendem que o núcleo essencial há de ser definido para cada caso, tendo em vista o objetivo perseguido pela norma de caráter restritivo. O núcleo essencial seria aferido mediante a utilização de um processo de ponderação entre meios e fins, com base no princípio da proporcionalidade. O núcleo essencial seria aquele mínimo insuscetível de restrição ou redução (HESSE, ob. cit. p. 134). Tanto a teoria absoluta quanto a teoria relativa pretendem assegurar maior proteção aos direitos fundamentais, na medida em que buscam preservá-los contra ação legislativa desarrazoada.  Todavia, todas elas apresentam fragilidades. É verdade que a teoria absoluta, ao acolher uma noção material do núcleo essencial, insuscetível de redução por parte do legislador, pode converter-se, em muitos casos, numa fórmula vazia, dada a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de se demonstrar ou caracterizar in abstracto a existência desse mínimo essencial. É certo, outrossim, que a ideia de uma proteção ao núcleo essencial do direito fundamental, de difícil identificação, pode ensejar o sacrifício do objeto que se pretende proteger. Não é preciso dizer também que a ideia de núcleo essencial sugere a existência clara de elementos centrais ou essenciais e elementos acidentais, o que não deixa de conduzir a significativos embaraços teóricos e práticos. Por seu turno, a opção pela teoria relativa pode conferir uma flexibilidade exagerada ao estatuto dos direitos fundamentais, o que acaba por descaracterizá-los como princípios centrais do sistema constitucional. Por essa razão, propõe HESSE uma fórmula conciliadora, que reconhece, no princípio da proporcionalidade, uma proteção contra as limitações arbitrárias ou desarrazoadas (teoria relativa), mas também contra a lesão ao núcleo essencial dos direitos fundamentais. É que, observa HESSE, a proporcionalidade não há de ser interpretada em sentido meramente de adequação da medida limitadora ao fim perseguido, devendo também cuidar da harmonização dessa finalidade com o direito afetado pela medida (HESSE, op. cit., p. 149). A ordem constitucional brasileira não contemplou qualquer disciplina direta e expressa sobre a proteção do núcleo essencial de direitos fundamentais. É inequívoco, porém, que o texto constitucional veda expressamente qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV). Tal cláusula reforça a ideia de um “limite do limite” também para o legislador ordinário. Embora omissa no texto constitucional brasileiro, a ideia de um núcleo essencial decorre do próprio modelo utilizado pelo constituinte. A não admissão de um limite ao afazer legislativo tornaria inócua qualquer  proteção fundamental. Compreendidos os contornos do âmbito de proteção dos direitos fundamentais contra intervenções arbitrárias, cabe examinar as possíveis soluções quando se trata de intervenção em direitos individuais em nome da proteção a direitos de feição coletiva. A doutrina cogita de colisão de direitos em sentido estrito ou em sentido amplo. As colisões em sentido estrito referem-se apenas àqueles conflitos entre direitos fundamentais. As colisões em sentido amplo, por outro lado, envolvem os direitos fundamentais e outros valores que tenham por escopo a proteção de interesses da comunidade ou direitos fundamentais individuais e direitos fundamentais coletivos e difusos. Assim, é comum a colisão entre o direito de propriedade e interesses coletivos associados, por exemplo, a utilização da água ou a defesa de um meio ambiente equilibrado. Da mesma forma, não raro surgem conflitos entre as liberdades individuais e a segurança interna como valor constitucional, ou, como na hipótese dos autos, conflitos entre liberdade individual e saúde pública. Questão embaraçosa refere-se ao direito ou bem que há de prevalecer no caso de colisão autêntica. É possível que uma das fórmulas alvitradas para a solução de eventual conflito passe pela tentativa de estabelecimento de uma hierarquia entre direitos fundamentais. Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de rigorosa hierarquia entre diferentes direitos acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando, também, a Constituição como complexo normativo unitário e harmônico. A Corte Constitucional alemã reconheceu, expressamente, que, “tendo em vista a unidade da Constituição e a defesa da ordem global de valores por ela pretendida, a colisão entre direitos individuais de terceiros e outros valores jurídicos de hierarquia constitucional pode legitimar, em casos excepcionais, a imposição de limitações a direitos individuais não submetidos explicitamente a restrição legal expressa” (BVerfGE, 28, 243, 261).  Ressalte-se, porém, que a solução não se limita a proceder a uma simplificada ponderação entre princípios conflitantes, atribuindo precedência ao de maior hierarquia ou significado. Até porque, como observado, dificilmente se logra estabelecer uma hierarquia precisa entre os diversos direitos fundamentais constitucionalmente contemplados. Ao revés, no juízo de ponderação indispensável entre os valores em conflito, há de se contemplar as circunstâncias peculiares de cada caso. Disso resulta que a solução desses conflitos há de se fazer mediante a utilização do recurso à concordância prática, de modo que cada um dos valores jurídicos em conflito ganhe realidade. 5.1. Posse de drogas para consumo próprio: saúde e segurança públicas Na valoração da importância de determinado interesse coletivo como justificativa de tutela penal há de se exigir a demonstração do dano potencial associado à conduta objeto de incriminação. Em outras palavras, há que se verificar em que medida os riscos a que sujeitos os interesses coletivos podem justificar a conversão destes em objeto de proteção pelo direito penal. Conforme observa PUIG, o Estado Social não pode desconhecer, [na definição de crimes de perigo abstrato], a significação que, por si mesma, implica a extensão social de um determinado interesse e tampouco há de prescindir da exigência de um mínimo de repercussão do interesse coletivo em relação a cada indivíduo. Acredita o autor ser essa a via adequada se se pretende evitar a hipertrofia do direito penal (PUIG, Santiago Mir, “Concepto de Bien Jurídico-Penal como Limite del Ius Puniedi”, Estudos de Direito Penal, Processual e Criminologia em Homenagem ao Prof. Dr. Kurt Maldlener, coordenadores Adhemar Ferreira Maciel et alli. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciário, 2014). E exemplifica justamente com o direito à saúde pública. Não cabe negar, afirma o autor, que a saúde pública é um interesse coletivo que afeta cada indivíduo, mas há que se exigir um determinado grau de   lesividade individual para que se possa justificar a intervenção do direito penal. Até agora não se tem afirmado, por exemplo, que o álcool e o tabaco afetam suficientemente a saúde pública a ponto de legitimar a criminalização de sua venda e consumo. Em relação ao tabaco, observa que a proteção da ordem pública coletiva tem sido alcançada com o incremento da proibição de seu consumo em lugares públicos, porém por meio de medidas administrativas. O mesmo raciocínio, ainda segundo PUIG, aplica-se em relação às drogas. Sustenta ser preciso diferenciar as drogas quanto a seus distintos efeitos em relação a cada indivíduo. Além disso, há que se ter em conta que a lesividade individual vem, neste caso, acompanhada do consentimento da vítima. Lembra, ainda, que temos, no exemplo da saúde pública, a advertência de que não basta constatar a importância abstrata do bem, mas também se exige que reste demonstrada a concreta afetação do referido bem. Não basta, assim, que a saúde seja, em abstrato, um bem social fundamental para que mereça proteção penal. Aduz, por fim, um perigo que encerra a concepção abstrata dos bens jurídicos como merecedores de tutela penal: classificam-se os bens pela classe genérica de interesses, sem atenção aos diferentes graus de implicação. Incluem-se, assim, no bem jurídico “saúde”, por exemplo, desde as mais relevantes até as mais insignificantes manifestações quantitativas. A simples alusão a gêneros tão amplos, pouco serve, dessa forma, à delimitação daquilo passível de proteção por medidas de natureza penal. Nessa mesma linha, merecem citação as candentes observações de HASSEMER sobre a hipertrofia do direito penal. Discorrendo sobre o Direito Ambiental, com referências a outros direitos de natureza difusa e coletiva em que se verifica o mesmo fenômeno, afirma o autor com inegável acerto (HASSEMER, Winfried, Direito Penal Libertário, trad. Regina Greve. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 226-227), verbis: “A tarefa da proteção penal ecológica (garantia efetiva e preservação da saúde humana e da vida humana em face de novos e massivos prejuízos do meio ambiente natural) por parte do nosso Direito Penal Ambiental está mais para o fracasso do que para a realização. Esse direito penal carrega a característica da legislação ‘simbólica’: O ganho que dela se pode esperar é menor do que a proteção real dos bens jurídicos (os deficits da execução não são patentes apenas, a partir de hoje, para os peritos e responsáveis), mas, sim, de muito mais a demonstração das prestezas executiva e legislativa e da capacidade de ação. Isso é bom para a ‘aceitação’ política, mas ruim para a proteção do meio ambiente. Alterações penais simbólicas são impressionantes e possuem custos oportunos. Elas desoneram a política ambiental da pressão de buscar e aplicar medidas efetivas, mas caras e decisivas para a universalidade destinadas à garantia e manutenção dos bens jurídicos ameaçados. Quem toma o dirito penal não como ‘ultima ratio’, mas como ‘prima ratio’ ou, até mesmo, como ‘sola ratio’, da política interna, torna as coisas muito mais fáceis e desiste, antecipadamente, das busca por medidas de ajuda de natureza mais próxima dos problemas.” Acrescenta, ainda, que não considera o Direito Ambiental como uma “estratégia específica de uma área”, mas como um caso exemplar da política criminal moderna, que também pode ser observada em outras áreas, como Economia, Entorpecentes e Proteção de Dados. As ponderações dos autores citados ajustam-se como uma luva ao caso em análise. Afigura-se claro, até aqui, que tanto o conceito de saúde pública, como, pelas mesmas razoes, a noção de segurança pública, apresentam-se despidos de suficiente valoração dos riscos a que sujeitos em decorrência de condutas circunscritas a posse de drogas para uso exclusivamente pessoal. Diante desse quadro, cabe examinar o grau de interferência nos direitos individuais afetados, de forma a aferir, à luz de alternativas à criminalização, a necessidade da intervenção.

5.2 Livre desenvolvimento da personalidade e autodeterminação A criminalização da posse de drogas “para consumo pessoal” fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações. Algumas declarações de direito preveem o direito ao desenvolvimento da personalidade de forma expressa. Por exemplo, a Lei Fundamental alemã, em seu artigo 2º, I. O direito de personalidade em geral, previsto no referido dispositivo, não está limitado a determinados domínios da vida. Tal como acontece com a dignidade da pessoa humana, protege menos o particular em sua atuação do que, pelo contrário, na sua qualidade de sujeito. Aplica-se, dessa forma, não a diferentes domínios da vida, mas a diferentes modos de desenvolvimento do sujeito, como o direito à autodeterminação, à autopreservação e à autoapresentação ((Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, org. Leonardo Martins, coletânea original Jürgen Schwabe, trad. Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Konrad-Adenauer-Stiftung E.V., 2005). Quanto à autodeterminação, o direito de personalidade em geral garante ao particular determinar, por si próprio, sua identidade. Disso faz parte, entre outras coisas, “o direito de se assegurar da própria identidade e a liberdade de não ser onerado de maneira que afete massivamente a formação e a afirmação da identidade” (Cinquenta Anos, ob. cit, p. 175-176). Em outros ordenamentos jurídicos, da enunciação de vários aspectos da personalidade protegidos, deduz-se o direito geral da personalidade. Nossa Constituição consagra a dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem. Deles pode-se extrair o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação.  A proteção do indivíduo contra interferências que se estimem indevidas por parte do Estado pode ser atalhada, dessa forma, com a invocação do princípio da liberdade geral, que não tolera restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias para alguma finalidade de raiz constitucional, e mesmo pelo apelo ao princípio da proteção da dignidade da pessoa humana, que pressupõe o reconhecimento de uma margem de autonomia do indivíduo, tão larga quanto possível, no quadro dos diversos valores constitucionais. É sabido que as drogas causam prejuízos físicos e sociais ao seu consumidor. Ainda assim, dar tratamento criminal ao uso de drogas é medida que ofende, de forma desproporcional, o direito à vida privada e à autodeterminação. O uso privado de drogas é conduta que coloca em risco a pessoa do usuário. Ainda que o usuário adquira as drogas mediante contato com o traficante, não se pode imputar a ele os malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita. Esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário. A ligação é excessivamente remota para atribuir a ela efeitos criminais. Logo, esse resultado está fora do âmbito de imputação penal. A relevância criminal da posse para consumo pessoal dependeria, assim, da validade da incriminação da autolesão. E a autolesão é criminalmente irrelevante. São ilustrativos, nesse sentido, os exemplos citados por DANIEL PRADO (Boletim, IBCRIM, outubro/2012, p. 8-9), verbis: “Mesmo Jeremy Bentham, quase sempre lembrado pela infame arquitetura prisional pan-óptica, modelo de vigilância total muito combatido pelo pensamento crítico, já entendia, em sua ‘Introdução aos princípios da moral e da legislação’, que os atos de prudência, que consistem na promoção da própria felicidade, devem ser deixados à ética privada, cabendo ao legislador, no máximo, leves censuras a comportamentos evidentemente autolesivos. Isso vale inclusive para aqueles atos com repercussão social direita ou indireta, que continuam excluídos do alcance  da intervenção penal, mesmo quando as condutas de terceiros, a eles relacionadas, são incriminadas com severidade. São exemplos desse tratamento a prostituição, em que o ato de se prostituir é atípico, mas comete crime quem a explora, induz ou favorece (art. 228 a 230 do Código Penal); o jogo de azar, em que a exploração e o favorecimento de jogos e loterias não autorizadas são definidos como contravenção penal, mas a ação do apostador está sujeita somente à pena de multa (arts. 50 a 58 da Lei de Contravenções Penais) e o suicídio, em que a tentativa de supressão da própria vida é atípica, mas constituem crime o induzimento, a instigação ou o auxílio à prática (art. 122 do CP). Quando muito, a conduta potencialmente autolesiva recebe reprimendas não penais compatíveis com a concepção benthamniana. Basta lembrar da condução de veículos automotores sem os devidos equipamentos de segurança pessoal, como o capacete para as motocicletas (art. 244 do Código de Trânsito Brasileiro) e o cinto de segurança para os automóveis (art. 167 do CTB), prevista com infração administrativa, mas excluída do rol dos crimes de trânsito.” A criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde. Não chego ao ponto de afirmar que exista um direito a se entorpecer irrestritamente. Pode ser perfeitamente válida a imposição de restrições a determinadas substâncias, não havendo que se falar, portanto, nesse caso, em direito subjetivo irrestrito. Também a Corte Constitucional alemã negou a existência de semelhante direito (Recht zum Rausch), ao afirmar a viabilidade da criminalização do tráfico de cannabis sativa. De forma resumida, o §31 da lei alemã sobre narcóticos (“Betäubungsmittelgesetz”) estabelece que a posse de pequenas quantias de drogas pode não ser criminalizada, exceto em caso de interesse público, e autoriza os promotores a encerrar o caso sem consultar o Judiciário. ação RE 635659 / SP Em 1994, o Tribunal Constitucional Federal considerou que casos envolvendo posse, compra ou importação de pequenas quantias de maconha para uso eventual devem ser desconsiderados pela insignificância de culpa e da proporção do dano causado. A Corte consignou que, pelo princípio da proporcionalidade, não poderia haver grandes diferenças de proporção da quantidade de maconha entre os casos e que, por isso, deveriam ser implementadas políticas de descriminalização às situações que envolvessem posse de pequenas quantidades para uso pessoal. Também explicitou que o art. 2, 1, da Lei Fundamental assegura o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, mas que o uso de drogas, em especial graças à forte repercussão social que tem, não pode estar nele incluído. Não haveria, assim, um direito a “ficar intoxicado” (“Recht auf Rausch”) assegurado pela Lei Fundamental. Todavia, isso não significa que se lance mão do direito penal para controle do consumo de drogas, em prejuízo de tantas outras medidas de natureza não penal, como, por exemplo, a proibição de consumo em locais públicos, a limitação de quantidade compatível como o uso pessoal, a proibição administrativa de certas drogas sob pena de sanções administrativas, entre outras providências não tão drásticas como as sanções de natureza penal. Dessa forma, a prevenção do uso indevido de drogas, um dos princípios do sistema nacional de política públicas sobre drogas – art. 4º da Lei 11.343/06 – é uma finalidade estatal válida. No entanto, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal mostra-se excessivamente agressiva à privacidade e à intimidade. Além disso, o dependente de drogas e, eventualmente, até mesmo o usuário não dependente estão em situação de fragilidade, e devem ser destinatários de políticas de atenção à saúde e de reinserção social, como prevê nossa legislação – arts. 18 e seguintes da Lei 11.343/06. Dar tratamento criminal a esse tipo de conduta, além de andar na contramão dos próprios objetivos das políticas públicas sobre o tema, rotula perigosamente o usuário, dificultando sua inserção social. 39 Em elaboração RE 635659 / SP A situação ainda é mais grave pela prevalência do consumo de drogas entre os jovens, pessoas em fase de desenvolvimento da personalidade e definição de vida e, por isso, especialmente sensíveis à rotulação decorrente do enquadramento criminal. Da mesma forma, a percepção geral é de que o tratamento criminal aos usuários de drogas alcança, em geral, pessoas em situação de fragilidade econômica, com mais dificuldade em superar as consequências de um processo penal e reorganizar suas vidas depois de qualificados como criminosos por condutas que não vão além de mera lesão pessoal. Assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por ofender o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma claramente desproporcional. 6. Alternativas à criminalização Não obstante a subsistência, na maioria dos ordenamentos jurídicos, de disposições reproduzidas a partir das normas repressivas das convenções internacionais sobre o tema, é interessante observar uma crescente adoção, por diversos países, de alternativas à criminalização. Em 2009, na Comission on Narcotic Drugs, foi elaborado o Plano de Ação da ONU até 2019, que prevê, entre outras diretrizes, o desenvolvimento de estratégias de descriminalização do uso de acordo com práticas e experiências de cada país. Trata-se, portanto, de momento propício ao debate da matéria sob a perspectiva constitucional, viabilizando, em certa medida, novas abordagens sobre o tema. Em todo o mundo, discute-se qual o modelo adequado para uma política de drogas eficiente. A alternativa à proibição mais em voga na atualidade é a não criminalização do porte e uso de pequenas quantidades de drogas, modelo adotado, em maior ou menor grau, por diversos países europeus, Portugal, Espanha, Holanda, Itália, Alemanha e 40 Em elaboração RE 635659 / SP República Checa, entre outros. Muitos desses países passaram a prever apenas sanções administrativas em relação a posse para uso pessoal. Em outros países, a descriminalização decorreu por força de decisão judicial de suas Cortes Constitucionais. Em 1994, a Corte Constitucional da Colômbia declarou inconstitucional a criminalização do consumo de entorpecentes. Na Argentina, a Corte Constitucional reconheceu, em 2009, a incompatibilidade da norma penal com a garantia da intimidade prevista na Constituição, além da ineficácia da política de criminalização. Além disso, em muitos países, inclusive naqueles em que a posse para uso pessoal ainda é definida com crime, a distinção entre tráfico e uso é feita por critérios objetivos, geralmente com base no peso e na natureza da droga apreendida. Definem-se, para cada tipo de droga, limites máximos de peso, abaixo dos quais se presume que a droga se destina a uso pessoal. Segue, abaixo, em relação aos países em que a posse para consumo pessoal não é considerada crime, um panorama do atual quadro normativo das alternativas à criminalização, com os critérios de distinção entre tráfico e uso – lista elaborada a partir de dados coletados pelo Transnational Institute e Colectivo Estudios Drogas y Derecho (CEDD) e pelo European Legal Database on Drugs/European Monitoring Center for Drugs and Drugs Addiciton, (emcdda.europa.eu/elddm, 15.8.15): País Alternativas à criminalização Critérios de distinção Argentina Sem medidas Interpretação do juiz. administrativas. Bolívia Tratamento compulsório. Uso equivalente a 48 horas de consumo. Chile Medidas administrativas. Interpretação do juiz. 41 Em elaboração RE 635659 / SP Colômbia Sem medidas 20g de maconha, 5g de administrativas haxixe, 1g de cocaína. Equador Sem medidas 10g de cannabis, 2g administrativas de pasta base de cocaína. Paraguai Sem medidas 10g de cannabis, 2g de administrativas. cocaína, heroína e derivados de opiáceos. Peru Tratamento compulsório. 8g de maconha, 5g de pasta de cocaína, 250g de ectasy. Uruguai Sem medidas 40g de maconha por administrativas. mês. Costa Rica Sem medidas Interpretação do juiz. administrativas. Honduras Internação compulsória. Interpretação do juiz. Jamaica Somente cannabis. Sem 2 onças (cerca de 57 medidas administrativas. gramas) de maconha 2.8g de cocaína, heroína e morfina. México Sem medidas 5g de cannabis, 2g de administrativas. Ópio, 0.5g de cocaína. 42 Em elaboração RE 635659 / SP Alemanha A lei permite a não Entre 6 e 15g de instauração de processo maconha (14 Estados criminal. fixaram em 6g). Cocaína heroína: 1 a 2g (prática judicial). Bélgica Apenas cannabis. Sem 3g de resina ou da erva. medidas administrativas. Espanha Medidas 25g de haxixe, 100g de administrativas. Cannabis, 3g de heroína, 7.5g de cocaína. Holanda Sem medidas 5g de maconha, 0.5g de administrativas. cocaína. Itália Medidas 1g de THC, 0.25g de administrativas. heroína e 0.75g de cocaína. Lituânia Medidas 5g de maconha, 0.2 de administrativas. Heroína, 0.2 de cocaína. Luxemburgo Apenas cannabis. Medidas Interpretação do juiz. administrativas. Portugal Medidas 25g de maconha administrativas. (equivalente a 10 doses diárias), 1g de ecstasy e 2g de cocaína. Países Baixos Sem medidas 5g de maconha e 0.5g de administrativas. heroína ou cocaína. 43 Em elaboração RE 635659 / SP República Checa Medidas 15g de maconha, administrativas. dependendo da pureza, 1g de cocaína, 4 tabletes de ecstasy. Não há como negar que a adoção de critérios objetivos para a distinção entre uso e tráfico, fundados no peso e na natureza da droga apreendida, e às vezes até em seu grau de pureza, é medida bastante eficaz na condução de políticas voltadas a tratamento diferenciado entre usuários e traficantes. Todavia, tendo em conta a disparidade dos números observados em cada país, seguramente decorrente do respectivo padrão de consumo, dos objetivos específicos, entre outras variantes, não se pode tomar como referência o modelo adotado por este ou aquele país. Recomenda-se, assim, especificamente no caso Brasil, ainda sem critérios objetivos, regulamentação nesse sentido, precedida de estudos sobre as peculiaridades locais. Cabe registrar que, também no Brasil, a própria Lei 11.343/2006 contém interessantes diretivas que muito podem contribuir para resultados mais eficazes no combate às drogas, em relação a usuários e dependentes, do que a criminalização da posse para uso pessoal. Sobre o tema, ponderam MARCELO CAMPOS e RODOLFO VALENTE (Boletim, IBCRIM, outubro/2012, p. 3), verbis: “[…] de fato, há outros meios alternativos à criminalização, adequados aos fins propostos. A própria lei 11.343/60 traz profícuas diretrizes que, antagonicamente, são tolhidas pela política repressiva […]. Todas as diretrizes são encadeadas em articulação necessária com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacional de Assistência Social e norteadas pelo “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade 44 Em elaboração RE 635659 / SP individual em relação ao uso indevido de drogas” (art. 19, III). Entretanto, apesar de ser regulamentada pela Portaria 1.028/2005 do Ministério da Saúde, a política de redução de danos segue desprestigiada e sem efetividade diante do óbice representado pela primazia da tutela penal. Evidenciou-se, desse modo, que não apenas há outras medidas aptas a promover os fins propostos sem atingir direitos fundamentais, como também que a própria criminalização do consumo impede a implementação dessas medidas”. Nessa linha, cabe aduzir que, não obstante o reconhecimento, pelo STF, da natureza penal das medidas previstas no art. 28 da Lei 11.343/2006, foram catalogadas, recentemente, interessantes práticas integrativas na aplicação do art. 28 da Lei de Drogas por diversos órgãos jurisdicionais, em busca de resultados condizentes com os objetivos do sistema nacional de políticas sobre drogas. Essas práticas estão sintetizadas na pesquisa “Práticas Integrativas na Aplicação da Lei 11.343/2006”, publicada no final de 2014, fruto de trabalho conjunto da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça com a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e apoio do Conselho Nacional de Justiça. O projeto promoveu, durante quatro anos, encontros científicos em todas as regiões do país, com juízes, promotores, defensores públicos, advogados e outros operadores do sistema de justiça, bem como servidores dessas instituições, responsáveis pela articulação da rede de saúde e assistência social na área de drogas. Foram analisadas, nesse período, as boas práticas e os desafios encontrados pelo sistema de justiça na aplicação do artigo 28 da Lei de Drogas. A partir da indagação de como viabilizar o trabalho nos Juizados Criminais, considerado o necessário diálogo entre profissionais das áreas de Saúde e Direito, revela a pesquisa os principais desafios do trabalho realizado em três Juizados Especiais Criminais, situados no Distrito Federal, em Curitiba e no Rio de Janeiro. 45 Em elaboração RE 635659 / SP As experiências ilustradas na referida publicação assentam-se, todas elas, na abordagem interdisciplinar do tema drogas. O grande desafio da Justiça nessa abordagem, conforme observado no relatório da pesquisa, é acolher demandas dos usuários ou dependentes para além de sua condição de réus em um processo por porte de drogas para uso próprio. Afinal, na linha das práticas atualmente observadas em diversos países, a política nacional sobre drogas retirou do sistema carcerário os usuários e dependentes, destinando-lhes os sistemas de saúde e de assistência social. Conforme destacado em uma das experiências (Curitiba), o que mais preocupava era que, após a autuação tradicional, verificava-se, depois do cumprimento da medida aplicada, um expressivo retorno do usuário ao sistema. O jovem (18 a 24 anos) que entrava pela primeira vez no sistema como usuário, recebia do Poder Judiciário medidas ou penas sem qualquer efetividade – baseadas na ideia do amedrontamento – e voltava ao sistema pela prática de outras infrações, como violação de domicílio, vias de fato, perturbação da tranquilidade, lesões corporais, ameaças, furto, roubos e até latrocínios. Observou-se que alguns desses crimes eram cometidos como meio de obtenção da droga. E conclui o relato: “Os fatores de sucessos são muitos, a começar pela percepção de que é possível fazer a diferença. A valorização do ser humano em suas potencialidades favorece a construção de novos caminhos para a sua história. Há que se considerar, ainda, que esse tipo de abordagem pode potencializar a prevenção, realizada sob os auspícios do Poder Judiciário e do Ministério Público. Para essa atuação do sistema jurídico, é essencial que esteja integrada com equipe de profissionais das áreas de Psicologia, Serviço Social, Medicina, Pedagogia, entre outras, nos Juizados Especiais Criminais.” 46 Em elaboração RE 635659 / SP Dados da experiência paranaense indicam a interrupção da redução das condutas infracionais repetitivas e a estabilização da reincidência em percentuais (14%), muito menores do que os encontrados anteriormente à iniciativa. Na experiência do Distrito Federal, relatou-se a utilização do denominado “paradigma de intervenção” em rede que, entre outros aspectos, reconhece maior efetividade e adesão nas ações que ocorrem nas comunidades do usuário de drogas. Para efetivar esse novo paradigma, a equipe técnica deu início às participações nas audiências de advertência sobre os efeitos das drogas, realizadas nos Juizados Especiais Criminais, e passou a realizar atendimentos aos jurisdicionados nos fóruns da região administrativa de residência do usuário. Essa abordagem tem demonstrado maior eficácia no intento de avaliar o contexto psicossocial dos usuários de drogas e propor a instituição adequada para cumprimento da medida acordada em juízo. A partir da avaliação, é possível proceder ao encaminhamento com o objetivo de promover a diminuição dos fatores de risco, assim como potencializar os fatores de proteção. Por fim, na experiência do Rio de Janeiro, que teve início a partir de parceria entre o 9º Juizado Especial Criminal da Barra da Tijuca e o Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (PROJAD), do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “buscou-se estabelecer um trabalho em que a pessoa autuada pelo porte ou uso de drogas pudesse efetivamente participar das discussões nas audiências e fazer com que aquela fosse uma oportunidade concreta para o indivíduo refletir a respeito de sua relação com o uso de drogas, desconstruindo um modelo punitivo de justiça”. Após ressaltar que a prática de um trabalho integrado na operacionalização da nova Lei não se restringe a esses locais, destaca-se, na citada pesquisa, que essas experiências evidenciam, em comum, a busca permanente dos envolvidos para que os autores do fato tenham oportunidade de refletir a respeito de seu padrão de uso de drogas, atuação em plena consonância com as diretrizes internacionais de 47 Em elaboração RE 635659 / SP redução de danos e de prevenção de riscos, incorporadas na legislação brasileira pelos artigos 18 a 21 da Lei 10.343/2006, acima transcritos. Observa-se, ainda, que isso somente se tornou possível em razão da mudança de mentalidade por parte dos operadores do Direito, “na medida em que a riqueza dessa atuação integrada consiste precisamente na possibilidade efetiva de participação da equipe multidisciplinar no encaminhamento de cada caso, a partir da identificação das singularidades de dada situação”. É desse panorama que se constata que, embora ainda existam muitos aspectos a melhorar, as experiências realizadas pioneiramente no Rio de Janeiro, no Distrito Federal e em Curitiba “são o germe de uma abordagem mais técnica, mais humana e mais eficiente por parte dos Juizados Especiais Criminais no tratamento dessa delicada questão envolvendo seres humanos e drogas”. Um dos principais obstáculos na adoção de práticas na linha das experiências relatadas decorre, sem dúvida, do tratamento criminal de condutas a que a própria lei estabelece, como objetivo primordial, abordagem preventiva e de recuperação, com vistas, sobretudo, à redução de riscos. Muitas vezes, conforme observado na citada publicação, “o usuário de drogas é estigmatizado pela falta de informação e postura moralista da população em geral, que o vê como uma pessoa de mau caráter, má vontade, um criminoso, fracassado ou autodestrutivo”. Diante da análise aqui procedida, é possível assentar que a criminalização do usuário restringe, em grau máximo, porém desnecessariamente, a garantia da intimidade, da vida privada e da autodeterminação, ao reprimir condutas que denotam, quando muito, autolesão, em detrimento de opções regulatórias de menor gravidade. Nesse contexto, resta evidenciada, também sob essa perspectiva, a inconstitucionalidade da norma impugnada, por violação ao princípio da proporcionalidade. 48 Em elaboração RE 635659 / SP 7. Manutenção das medidas do art. 28 da Lei 11.343/2006 Reconhecida a inconstitucionalidade da norma impugnada, e considerando, por outro lado, que as políticas de redução de danos e de prevenção de riscos positivadas na legislação em vigor conferem ponderável grau de legitimidade a medidas restritivas de natureza não penal, é importante viabilizar, até o aprimoramento da legislação, solução que não resulte em vácuo regulatório que, em última análise, possa conduzir à errônea interpretação de que esta decisão implica, sem qualquer restrição, a legalização do porte de drogas para consumo pessoal. Tendo em conta os resultados retratados na pesquisa sobre práticas integrativas, há pouco noticiada, afigura-se que a aplicação, no que couber, das medidas previstas no referido artigo, sem qualquer efeito de natureza penal, mostra-se solução apropriada, em caráter transitório, ao cumprimento dos objetivos da política nacional de drogas, até que sobrevenha legislação específica. Afastada a natureza criminal das referidas medidas, com o consequentemente deslocamento de sua aplicação da esfera criminal para o âmbito civil, não é difícil antever uma maior efetividade no alcance dessas medidas, além de se propiciar, sem as amarras da lei penal, novas abordagens ao problema do uso de drogas por meio de práticas mais consentâneas com as complexidades que o tema envolve. 8. Apresentação do preso por tráfico ao juiz competente Por outro lado, conferindo-se às medidas do 28, da Lei 11.343/2006, natureza exclusivamente administrativa, restará afastada, com isso, não só a possibilidade de prisão em flagrante, conforme já previsto no art. 48, §2º, da referida Lei, como, igualmente, a condução coercitiva à presença do juiz, autorizada nesse mesmo dispositivo, ou à delegacia. Remanesce, contudo, a possibilidade de prisão pela posse quando o policial entender que a conduta se qualifica como tráfico, nos termos do 49 Em elaboração RE 635659 / SP art. 33 da referida da Lei. Diante dessa possibilidade, ou seja, quando o policial entender que não se trata de posse para uso pessoal, passível de simples notificação, nos termos do art. 48, §2º, e realizar a prisão em fragrante, temos que a imediata apresentação do preso ao juiz conferiria maior segurança na distinção entre traficante e usuário, até que se concebam, em norma especifica, o que se seria recomendável, critérios revestidos de maior objetividade. Nos termos do art. 28, §2º, da Lei 11.343/2006, “Para determinar se a droga destinava a consumo pessoal, “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.” Já ressaltei a zona cinzenta entre o tráfico de drogas e a posse de drogas para consumo pessoal. A diferença entre um e outro enquadramento é decisiva para pessoa abordada. Ou poderá ser presa, por até quinze anos, ou seguirá livre, embora sujeita, pelo menos transitoriamente, às medidas previstas no art. 28, sem efeitos penais. Conforme há pouco relatamos, há sérios indicativos de que esse contexto pode conduzir à inadmissível seletividade do sistema penal. A interpretação dos fatos, com elevada carga de subjetividade, pode levar ao tratamento mais rigoroso de pessoas em situação de vulnerabilidade – notadamente os viciados. À falta de critérios objetivos, a avaliação judicial rigorosa das circunstâncias da prisão é imperativa para que se dê o correto enquadramento aos fatos. A prática mostra, no entanto, fragilidade na pronta avaliação de casos relativos a drogas. A norma do art. 28 da Lei 11.343/06 é construída como uma regra especial em relação ao art. 33. Contém os mesmos elementos do tráfico e acrescenta mais um – a finalidade de consumo pessoal. Disso resulta a impressão – falsa – de que a demonstração da finalidade é ônus da defesa. À acusação não seria necessário demonstrar qualquer finalidade para enquadramento no tráfico pela singela razão de que o tipo penal não enuncia finalidade. Em verdade, a legislação usou a 50 Em elaboração RE 635659 / SP forma mais simples de construir as figuras, do ponto de vista linguístico, mas não a que permite sua mais direta interpretação. A presunção de não culpabilidade – art. 5º, LVII, da CF – não tolera que a finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida. A finalidade é um elemento-chave para a definição do tráfico. A cadeia de produção e consumo de drogas é orientada em direção ao usuário. Ou seja, uma pessoa que é flagrada na posse de drogas pode, muito bem, ter o propósito de consumir. Seria incompatível com a presunção de não-culpabilidade transferir o ônus da prova em desfavor do acusado nesse ponto. Dessa forma, a melhor leitura é de que o tipo penal do tráfico de drogas pressupõe, de forma implícita, a finalidade diversa do consumo pessoal. Sua demonstração é ônus da acusação. A finalidade – circunstância íntima ao agente –, via de regra, não pode ser provada de forma direta, sendo avaliada com base nos indicativos dados pelas circunstâncias do caso. Por isso, a própria lei diz que a avaliação deve ser feita de acordo com os indícios disponíveis. Assim, é ônus da acusação produzir os indícios que levem à conclusão de que o objetivo não era o consumo pessoal. Essa circunstância deve ser alvo de escrutínio pelo juiz. Se os indícios apontam para o tráfico de uma forma inequívoca, pode-se dispensar uma fundamentação explícita – não se exige esforço argumentativo para demonstrar que uma tonelada de droga não se destina ao consumo pessoal. Em casos limítrofes, contudo, a avaliação deve ser cuidadosa. Uma segunda questão diz com o standard probatório a ser empregado na avaliação, especialmente na prisão preventiva. O art. 312 do CPP exige, para a prisão preventiva, “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. Muitos magistrados invocam o brocardo na dúvida pela acusação (in dubio pro societate) para justificar a prisão preventiva. Parece correto exigir menos para a prisão preventiva do que para a condenação. Mas não há como impor à defesa o ônus de provar a inocência, mesmo nessa 51 Em elaboração RE 635659 / SP fase processual. O mínimo que se exige para a prisão preventiva é a preponderância da prova. Assim, o juiz pode – e deve – desde logo, avaliar a situação do flagrado ou indiciado, analisando se os indícios são preponderantes em afastar a finalidade do consumo pessoal. No caso das prisões em flagrante, a situação é particularmente grave. Como já dito, o enquadramento jurídico é feito pela autoridade policial, com base, principalmente, na palavra dos policiais condutores. A palavra e a avaliação dos policiais merece crédito, mas a garantia do devido processual legal pressupõe a avaliação feita por um juiz “neutro e desinteressado”, sobrepondo a avaliação de um “policial envolvido no empreendimento muitas vezes competitivo de revelar o crime” – Justice Robert H. Jackson, redator da opinion da Suprema Corte dos Estados Unidos, caso Johnson v. United States 333 U.S. 10 (1948). Além disso, a jurisprudência do STF firmou-se no sentido de que o tráfico de drogas não é incompatível com a liberdade provisória (HC 104.339, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10.5.2012), com o regime inicial aberto de cumprimento de penas (HC 111.840, rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, julgado em 14.6.2012), e mesmo com a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito (HC 97.256, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 1º.9.2010, que redundou na Resolução 5/2012, do Senado Federal). Levando esses fatores em consideração, tenho que a avaliação da qualidade da prisão em flagrante pelo tráfico de drogas e da necessidade de sua conversão em prisão preventiva deve ser objeto de especial análise pelo Poder Judiciário. A apresentação do preso ao juiz, em curto prazo, para que o magistrado possa avaliar as condições em que foi realizada a prisão e se é de fato imprescindível a sua conversão em prisão preventiva é providência imprescindível. Trata-se de medida já incorporada ao direito interno, prevista no art. 7.5 do Pacto de São José da Costa Rica, mas que ainda encontra alguma resistência em sua aplicação, por razões atinentes, sobretudo, a dificuldades operacionais. 52 Em elaboração RE 635659 / SP A apresentação de presos ao juiz é uma realidade em praticamente todos os países democráticos. A simples tradição não sustenta, portanto, a nossa praxe atual. Tramita no Congresso PLS 554/2011, que busca dar tratamento legislativo ao tema. No entanto, para casos de tráfico simples de drogas, não há razão para esperar alteração legislativa. Cabe registrar, ainda, a existência de projetos piloto sobre o tema, objeto de parcerias entre o CNJ e Tribunais de Justiça. Contudo, independentemente dos projetos em andamento, tenho por cabível e conveniente, nas prisões por tráfico de drogas, a determinação, por esta Corte, da imediata apresentação do preso ao juiz.

9. Dispositivo

Pelo exposto, dou provimento ao recurso extraordinário para: 1 – Declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de forma a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal. Todavia, restam mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, com natureza administrativa;

2 – Conferir, por dependência lógica, interpretação conforme à Constituição ao art. 48, caput, da Lei 11.343/06, no sentido de que, na prisão em flagrante por tráfico de droga, o preso deve, como condição de validade da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, ser imediatamente apresentado ao juiz; 3 – Conferir, por dependência lógica, interpretação conforme à Constituição ao art. 48, §2º, da Lei 11.343/2006, no sentido de que, tratando-se de conduta prevista no art. 28 da referida Lei, o autor do fato será apenas notificado a comparecer em juízo; 53 Em elaboração RE 635659 / SP 4 – Absolver o acusado, por atipicidade da conduta; e

5 –  Determinar ao Conselho Nacional de Justiça as seguintes providências:

a) Diligenciar, no prazo de seis meses, a contar desta decisão, por meio de articulação com Tribunais de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério da Justiça e Ministério da Saúde, sem prejuízo de outros órgãos, os encaminhamentos necessários à aplicação, no que couber, das medidas previstas no art. 28 da Lei 11.343/2006, em procedimento cível, com ênfase em atuação de caráter multidisciplinar;

b) Regulamentar, no prazo de seis meses, a audiência de custódia determinada nesta decisão, com o respectivo monitoramento;

c) Apresentar a esta Corte, a cada seis meses, relatório das providências adotadas e resultados obtidos, até ulterior deliberação.

É como voto.

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