sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Participação de juízes na composição do STF é decrescente

É indiscutível a crescente importância do Poder Judiciário na vida pública do país. A participação de magistrados nas questões mais relevantes não tem, contudo, correspondido ao grau de atenção à nomeação de ministros para o Supremo Tribunal Federal, o ápice da hierarquia judicial.
O modelo de indicação brasileiro é bastante semelhante ao adotado pelo sistema constitucional norte-americano. Os ministros são indicados pelo Presidente da República, mas devem ter seu nome confirmado pelo Senado. Nos Estados Unidos, esse procedimento está longe de ser meramente simbólico. Ao contrário, cada indicação implica negociações, mobilização da opinião pública e dos meios de comunicação, levantamentos sobre a vida, a carreira e a obra do candidato, lobbies e toda sorte de pressões, quer a favor quer contra a indicação. Não é, pois, casual que este processo possa consumir meses até que se chegue à aprovação final.
O Senado funciona como uma caixa de ressonância da sociedade, recolhendo e confrontando opiniões e expectativas. Em consequência, o nome escolhido carrega consigo uma áurea de legitimidade constitucional e democrática.
Para ilustrar, bastaria lembrar, dentre outras dezenas de situações, o que ocorreu em 2005, quando da aposentadoria da primeira mulher a compor a Corte Suprema dos EUA. O então presidente George Bush, contrariando preferências da sociedade a favor de que a vaga coubesse a uma mulher, hispânica, anunciou o nome de John Roberts, um juiz conservador, particularmente em relação a questões concernentes ao aborto. Imediatamente, manifestações públicas, especialmente de grupos feministas e de favoráveis ao direito da mulher de fazer suas escolhas quanto à interrupção ou não da gravidez ocuparam as manchetes, as ruas e espaços públicos. O embate ganhou ainda maior vulto com o falecimento do ministro Renhquist, que estivera na Suprema Corte desde 1972 e na posição de presidente desde 1986. A existência simultânea de duas vagas e a nomeação do preferido do Executivo para a presidência da Corte, antes mesmo de sua aprovação pelo Senado, acirrou a disputa, transformando-a em tema prioritário, exacerbando posicionamentos.
Ainda que as comparações devam ser feitas com cuidado, não apenas devido à maior longevidade da democracia norte-americana, mas também porque lá o sistema bipartidário distribui com maior clareza as tendências ideológicas, é indubitável que o procedimento de escolha de ministros para o Supremo, entre nós, ainda não alcançou a dimensão de uma questão com capacidade de ultrapassar as fronteiras palacianas e círculos especializados.
Como se sabe, o Senado brasileiro tem cumprido o seu papel de forma estritamente ritualística. O sintomático deste comportamento, que transforma seu dever constitucional em mera formalidade, não é o fato de ter rejeitado apenas um nome em toda a sua história, mas, sobretudo, a qualidade ou o teor das discussões que antecedem a aprovação.
Não se conclua, contudo, que esse cenário seja marcado pelo mero acaso. Ao contrário, é possível apreender uma lógica e uma estratégia na composição dos integrantes de nossa Corte Suprema. Frederico Almeida, em tese de doutorado denominada “A nobreza togada — as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil” mostra como se constitui um campo político da justiça representado pelo espaço social de posições, capitais e relações. No caso das elites institucionais, isto é, das posições de cúpula das instituições de administração da Justiça estatal, o papel das faculdades de Direito é fundamental na formação e na hierarquização dos grupos profissionais no interior do sistema de Justiça. O diferente peso das escolas em que se formaram os 162 ministros do Supremo Tribunal Federal desde 1981 até 2011 pode ser constatado na tabela abaixo:























A liderança da USP e em seguida da UFPE podem ser, em grande medida, explicadas pela antiguidade dessas escolas, as primeiras a serem criadas no país. O peso delas, entretanto, permanece alto mesmo depois da proliferação de Faculdades de Direito. É também extraordinária a presença de instituições públicas quando contrastadas com as privadas: do total de 161 ministros, 155 (96%) são provenientes de faculdades públicas. Esse dado é ainda mais significativo quando se sabe que desde os anos 1970 as instituições privadas ultrapassaram largamente em quantidade o número total de escolas de Direito.
Essa distribuição de ministros por escolas de formação, como expõe a tabela, sugere que aumenta a probabilidade de uma indicação para a cúpula do Judiciário quando sua graduação se deu em uma faculdade de prestígio. Ou, em outros termos, que ministros provêm, em sua extensa maioria, de uma elite constituída pelos formados nas escolas públicas mais tradicionais.
Quando se examina a carreira de origem dos ministros, também é possível verificar tendências. Essa informação está sistematizada na tabela abaixo:


Fonte: CONJUR, 2011
Observa-se que entre 1945 e 2011 é claramente decrescente a participação de ministros oriundos da magistratura. Eles representavam a metade no período democrático de 1945 a 1963 (8 em um total de 17), caíram para 30% no regime militar e para 20% na redemocratização, de 1989 até hoje. Já a advocacia que apresentava um percentual de 50% entre 1945-63 cresceu para 64% entre 1964 e 1988 e retornou para a metade (50%) no período de 1989 a 2011, formando sempre o grupo predominante. Quanto ao Ministério Público, sua participação que era de apenas 9% durante os anos de 1964 a 1988 aumentou para 30% entre 1989 e 2011.
Essas informações podem ser completadas, com a discriminação da função exercida antes da nomeação para o STF.


Fonte: CONJUR, 2011
A diferença entre o número total de ministros com origem na magistratura e a soma do número de desembargadores e ministros do TFR/STJ se deve ao fato de que dos 24 desembargadores, seis não tiveram carreira no Poder Judiciário, mas no Ministério Público ou na advocacia antes de ingressar em tribunais (por exemplo, os ministros Ellen Gracie e Lewandowski). O mesmo ocorre no caso de ministros oriundos do TFR/STJ (por exemplo, os ministros Mário Velloso, Ilmar Galvão).
A proporção de ministros do STF com passagens pelo serviço público não judiciário é dominante em todos os períodos. É relativamente constante a presença de ex-ministros de Estado. O percentual de ministros que exerceram atividade política (deputados, senadores, prefeitos governadores) bastante elevada durante o regime militar foi muito reduzida após a redemocratização, sendo notável que desde 2008 nenhum dos integrantes da Corte passou por cargos políticos.
Muitas hipóteses poderiam ser formuladas com base nessas informações. Certamente, elas contribuíram para a discussão sobre a forma de constituição dos integrantes do Supremo. Ao que tudo indica, a ausência de um debate público tem fortalecido o Executivo. Suas indicações têm consolidado um modelo de prevalência de integrantes com carreira externa à magistratura. A força política do Judiciário pós Constituição de 1988 e seu consequente protagonismo são motivos mais do que suficientes para que a indicação de ministros para o STF passe a ocupar um lugar de destaque na pauta de um número maior de cidadãos.

Maria Tereza Sadek é doutora em ciência política, professora do Departamento de Ciência Política da USP e diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 9 de setembro de 2011

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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Revolta do STF por aumento faz Dilma rever Orçamento
Governo abre crise com Poder Judiciário ao retirar da previsão de gastos aumento de 14,7% para os ministros


Reajuste causaria efeito cascata com impacto estimado em R$ 8 bi no momento em que o governo fala em cortes

FELIPE SELIGMAN
NATUZA NERY

DE BRASÍLIA

Uma revolta dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) levou ontem o governo a rever a proposta orçamentária para 2012 e estudar a inclusão de uma previsão de aumento salarial para o Poder Judiciário.
Anteontem, ao enviar ao Congresso as previsões de receitas e gastos para o ano que vem, o governo não incluiu a proposta do Judiciário que previa aumento de 14,7% aos ministros do Supremo.
O percentual elevaria o teto do funcionalismo de R$ 26,7 mil para R$ 30,6 mil.
A proposta do Orçamento da União também deixou de fora reajustes de até 56% para servidores do Judiciário. O impacto destes aumentos aos cofres públicos é estimado em R$ 8 bilhões.
Diante do risco de crise institucional, ministros de Dilma foram enviados ontem à noite para uma reunião de emergência com o presidente do STF, Cezar Peluso.
Segundo a Folha apurou com integrantes do Supremo, o Planalto ficou de enviar ao Congresso adendo ao Orçamento com a nova despesa, mas sem compromisso de que a base trabalhará para aprová-lo.
A equipe econômica de Dilma considera a demanda do Judiciário impraticável por três razões: onera os cofres públicos, provoca efeito cascata em outras categorias e aumenta a pressão de servidores não contemplados.
Um aumento desta magnitude contraria o discurso do governo de austeridade nos gastos públicos.
No início da semana, o Ministério da Fazenda ampliou em R$ 10 bilhões a economia que o governo fará para o pagamento de dívidas como forma de se prevenir contra a crise econômica mundial.
A medida serviu de pretexto para que o Banco Central reduzisse em meio ponto percentual a taxa básica de juros, hoje em 12% ao ano.
Apesar da disposição fiscalista, Dilma já havia concordado em apoiar reajuste de 5% aos magistrados, índice abaixo do reivindicado pelo Judiciário de 14,7%.
As previsões de reajustes salariais do Ministério Público Federal também foram excluídas do Orçamento, o que irritou o procurador-geral da República, Roberto Gurgel.
Em reunião reservada com ministros do STF, Gurgel chegou a afirmar que entraria no tribunal com um mandado de segurança contra a Presidência. Foi aconselhado a não fazê-lo até que esgotadas as negociações.
Terça-feira, representantes do governo já haviam se encontrado com Peluso para tentar promover um acordo. Participaram Guido Mantega (Fazenda), Miriam Belchior (Planejamento), Luís Inácio Adams (AGU) e José Eduardo Cardozo (Justiça).
Após o encontro, duas versões circularam. Na primeira, integrantes do STF afirmam que o governo sinalizou que trabalharia para aprovar o aumento de 14,79%.
Na outra, o Planalto teria se comprometido em apoiar os 5%. No dia seguinte, ao fazer um pente fino na proposta, o tribunal percebeu que não fora contemplado.
O STF afirma que o Executivo é obrigado a encaminhar sua proposta ao Congresso, mesmo não concordando com seu teor. Irritados, os ministros classificaram o gesto como "ofensa gratuita".
"De bens intencionados o Brasil está cheio. O que está em jogo não é gasto, é o princípio que implica equilíbrio, que se faz ao mundo jurídico para que não haja supremacia de poderes", disse o ministro Marco Aurélio Mello.

Fonte: Folha de S. Paulo 02/09/2011

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Justiça em Números de 2011

Metade dos processos do país está em quatro tribunais

O Justiça em Números de 2011 trouxe duas notícias boas e outra ruim. A primeira boa notícia é que o número de casos novos ingressados na Justiça está crescendo a um ritmo mais lento. A segunda é que os juízes do país estão julgando mais. Já a notícia ruim é que o estoque de processos em tramitação no país segue aumentando, ou seja, o número de casos novos que chegam aos tribunais continua maior do que o número de processos julgados e encerrados (clique aqui para ler o Relatório no site do CNJ).

Uma notícia que não é boa nem ruim, mas simplesmente espetacular é que 60% do movimento processual do país está concentrado em quatro tribunais, os chamados tribunais de grande porte da Justiça Estadual. São eles, os Tribunais de Justiça de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Segundo o Justiça em Números, o estoque de processos nestes tribunais, ao final de 2010, era de 29 milhões de unidades. Somados os estoques dos outros 52 tribunais e de suas respectivas varas de primeiro grau da Justiça Federal, Trabalhista e Estadual, chega-se a um total de 31 milhões de processos. Ou seja, os quatro grandes respondem por 48% da movimentação de processos do país. (O estoque foi calculado somando-se o número de casos novos com o de casos pendentes e subtraindo o número de sentenças terminativas proferidas em 2010). No ano passado, a Justiça brasileira pôs fim a 22 milhões de processos.

Outra constatação que chama a atenção é o enorme peso da Justiça Estadual nos números globais. A Justiça Comum responde por 73% das novas ações ingressadas em 2010, por 81% dos casos pendentes e por 71% das decisões proferidas. São Paulo, sozinho, é responsável por um terço destas cifras.
ExecuçãoComo mostrou reportagem da ConJur, na segunda-feira (29/8), a execução continua sendo o grande gargalo da Justiça: "O relatório, que traz os números de 2010, mostra que a taxa de congestionamento da execução em primeira instância é de 84%. No caso das execuções fiscais, o volume é ainda maior: 91% de congestionamento." E continua o texto: "De cada 100 cidadãos ou empresas que procuram o Poder Judiciário, 84 podem até sair com uma decisão judicial favorável em primeira instância, mas não conseguirão fazer valer, de fato, seus direitos."
Trabalho
A Justiça do Trabalho é a que tem os melhores índices de eficiência. É o único ramo da Justiça que consegue julgar um número maior de processos do que o número de processos novos que ingressam. Em 2010, foram 4% a mais de sentenças do que o de casos novos — pouco, mas suficiente para reduzir o estoque de processos em tramitação em cerca de 140 mil processos.
Federal
A Justiça Federal está se aproximando desta meta. Em 2010, as sentenças proferidas representaram 91% do total de novos processos. Isso significa que o estoque de processos, que já é quase três vezes maior do que a capacidade de julgamento dos juízes, está aumentando. A carga de trabalho dos desembargadores federais é a mais alta do Judiciário brasileiro: são quase 12 mil processos para cada julgador, em média (contra cerca de 2 mil para os colegas da Justiça Comum e do Trabalho). No primeiro grau, a situação é menos dramática, mas não cômoda: estão à espera de julgamento no gabinete de cada juiz federal, em média 4,4 mil processos (contra 5,9 dos juízes estaduais e 2,4 dos trabalhistas).
JuizadosOs números mostram ainda o colapso que ameaça os Juizados Especiais. Criados para acelerar a solução de casos de baixa complexidade e de pequeno valor, os Juizados Especiais Federais já estão suplantando o volume de processos recebidos pela Justiça Federal de primeiro grau. Em 2010, foram 1,3 milhão de processos novos nos JEFs contra pouco mais de 900 mil na primeira instância. Mas enquanto a primeira instância tem um estoque de 4,6 milhões de processos à espera de julgamento, nos JEFs a lista de espera só tem 1,7 milhão.
Nos Juizados Especiais estaduais a situação é menos dramática, mas igualmente preocupante. O movimento de ações nos Juizados já corresponde a um terço do movimento da primeira instância.
Custos
O levantamento mostra ainda quanto custa o sistema de Justiça no país: R$ 41 bilhões. Representa 1,12% do PIB nacional e corresponde a uma despesa média de R$ 212 por cidadão brasileiro ao ano. Cerca de 90% do total é gasto com pessoal.

Pessoal
A prestação da Justiça no país está a cargo de 16.804 juízes e desembargadores. Desse total, cerca de 12 mil estão na Justiça Estadual. Ainda em relação ao total, 14,4 mil são juízes de primeiro grau e 2,3 mil desembargadores de segundo grau. O total de servidores judiciais chega a 321 mil, dos quais 207 mil são efetivos.

Resumo
Resumindo tudo em números: são 338 mil homens com um orçamento de R$ 41 bilhões às voltas com 60 milhões de processos para atender 190 milhões de brasileiros.

Fonte:
Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 1º de setembro de 2011

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terça-feira, 5 de julho de 2011

O Desembargador Fausto De Sanctis fala de seus casos e da Justiça brasileira

Não há mais a sensação de claustrofobia, reforçada pelas dezenas de processos espalhados pelo corredor e pela sala de pouca ventilação dos tempos da 6a Vara Federal. O agora desembargador Fausto De Sanctis ocupa um gabinete amplo no prédio do outro lado da rua e os documentos, em menor volume, estão diligentemente organizados em mesas e prateleiras. No

horizonte, em vez de fachadas sujas, uma rara aglomeração de árvores na Avenida Paulista, o Parque Mario Covas. Para seres de espírito burocrático, não incomuns no Judiciário, talvez fosse a dose final de acomodação. Mas De Sanctis permanece irremediavelmente irrequieto. Nos últimos meses, absorto nas novas funções e à espera do desenrolar das ações disciplinares contra ele, o magistrado assistiu à completa desmontagem de suas decisões contra criminosos do colarinho-branco. Em um curto espaço de tempo, tribunais superiores suspenderam a Operação Castelo de Areia, que investiga propinas pagas a políticos pela empreiteira Camargo Corrêa, e a condenação do banqueiro Daniel Dantas no curso da Santiagraha. Nada disso parece ter abalado suas convicções. “Não me arrependo de nenhuma decisão”, diz o juiz, cujo trabalho é atacado no Brasil e elogiado fora dele, inclusive nos Estados Unidos. Durante pouco mais de uma hora, resumidos a seguir, De Sanctis lembrou os principais casos na primeira instância e falou da Emenda Peluso, do abuso no uso de habeas corpus, da Marcha da Maconha e, claro, da corrupção no Brasil.

CartaCapital: Nos últimos anos, e nas últimas semanas, o seu trabalho esteve constantemente sob holofotes. O senhor foi muito criticado. Arrepende-se de alguma decisão?

Fausto de Sanctis: Todas as minhas decisões foram refletidas, levaram em consideração as garantias individuais, os fatos, a lei e a necessidade de proteção da sociedade. As decisões de grande repercussão foram pautadas por uma consistência e uma preocupação perene em tentar fazer o melhor. Não me arrependo de nada. Pela natureza dos casos que chegavam à 6a. Vara, pela notoriedade dos acusados, meu trabalho acabou muito exposto, mas nunca busquei os holofotes. Tive a preocupação não só de decidir, de condenar ou absolver, mas de prover a sociedade com os recursos devidos. Ao todo, 38 entidades beneficentes receberam repasses de recursos obtidos de delações premiadas e vendas antecipadas de bens apreendidos em casos julgados por mim. Visei contribuir para uma Justiça de Primeiro Mundo, solidária e igual.

CC: Mas seus adversários o acusam de autoritarismo.

FDS: A desqualificação do julgador é uma técnica de neutralização conhecida. Tenta-se neutralizar a credibilidade daquilo que é feito atacando o juiz, porque se espera e, muitas vezes já se sabe, que a prova é de tamanha evidência que poderá ensejar uma decisão desfavorável do acusado. Quem leu e lê as minhas decisões sabe que elas foram pautadas apenas pela correção e não por um protagonismo de veia autoritária, do direito penal do inimigo, do filhote de ditadura, como disseram. A grande tarefa de um juiz de uma vara especializada é conciliar o dever de garantir o conteúdo dos direitos mínimos fundamentais com a eficácia da persecução penal. É fácil defender o réu e abandonar a sociedade, o difícil é conciliar a atuação legítima do Estado e a garantia dos direitos humanos, individuais.

CC: Depois de tanta pressão, de enfrentar vários processos disciplinares, de virar alvo de integrantes de cortes superiores, o senhor ainda acredita no exercício independente da magistratura?

FDS: A atuação das varas especializadas mostrou um país, revelou o grau de comprometimento das instituições, inclusive da mídia. Para mim, a importância de tudo o que aconteceu é uma: ficou claro que a hipocrisia não pode mais imperar nos órgãos de poder e nos poderes. O crime organizado confronta o Estado. Mas, em resposta à pergunta:, sim, acredito no Poder Judiciário. A maioria absoluta dos juízes atua de maneira absolutamente correta, sem interesse próprio. Sou magistrado por convicção. Em nenhum momento me deixei seduzir por outro caminho. Por acreditar na Justiça é que continuo a ser juiz.

CC: Mas por pouco o senhor não foi punido pelo Conselho Nacional de Justiça.

FDS: O CNJ nada mais fez do que referendar a decisão tomada pelo órgão especial do Tribunal Regional Federal da 3a. Região, tribunal ao qual estou ligado como desembargador. Em outras palavras, o CNJ assumiu a decisão do tribunal como uma decisão acertada, no sentido de que não cometi nenhuma ilegalidade.

CC: O STJ anulou a Satiagraha sob o argumento de que o uso de agentes da Abin foi ilegal. É possível afirmar isso?

FDS: É muito comum a atuação de órgãos governamentais, agências governamentais, na investigação de fatos de interesse público. Em casos de sigilo, haveria a exigência de autorização judicial a permitir o compartilhamento dessa informação. Desde que a atuação de órgãos como a Abin ou o Banco Central, o INSS, tenha sido pautada dentro dos limites da autorização judicial, é válida. Mas aceitemos o argumento de que a participação foi ilegal. O fato é que as interceptações telefônicas foram enviadas pelas operadoras diretamente ao guardião, o sistema da Polícia Federal. Se a manipulação de documentos pelos agentes da Abin era ilegal, bastaria anular as provas por eles manipuladas. Jamais o teor completo, obtido dentro dos limites legais da autorização judicial.

CC: O que o senhor acha da proposta do Ministro Cezar Peluso para apressar a execução das penas e reduzir o tempo de trâmite dos processos?

FDS: O juiz tem de levar em consideração os fatos e as normas. Não é possível mais, como se faz hoje, fazer a interpretação da norma enquanto valor, e dar as costas aos fatos, à realidade. Há quem diga, como Douglas Fisher, que a verdadeira jurisdição constitucional é a ordinária, pois o juiz de primeiro grau está em contato direto com as partes. É incompreensível que o sistema brasileiro abarque o princípio da inocência de tal maneira que exija um transcorrer até o último grau de jurisdição. A Emenda Peluso é muito importante para minimizar os efeitos danosos da morosidade da Justiça. Mas eu incluiria outra questão. A interpretação e a elasticidade que se dão ao habeas corpus se justificam? Tenho de dizer que o habeas corpus é um instrumento absolutamente necessário, e deve ser usado pelos advogados como recurso constitucional, mas o HC tem sido utilizado como uma maneira de fraudar o devido processo legal, que também é um valor constitucional. É uma maneira de se evitar que o processo tenha o seu trâmite normal, que seja objeto dos seus recursos previstos legalmente e que haja apreciação profunda da prova no campo adequado e não por decisões monocráticas, isoladas, fora do contexto fático e da responsabilidade ética e jurídica.

CC: O que o senhor acha do novo Código de Processo Penal?

FDS: É um movimento garantista radical. Veja o caso da prisão preventiva. Quando estava na 6a. Vara, o índice de prisões preventivas era de 0,25% dos casos. Portanto, não sou fanático pela prisão preventiva. Mas o que o novo código prevê é um absurdo, veda a preventiva para crimes com pena inferior a 4 anos. Isso retira do juiz a possibilidade de apreciar a conveniência ou não da prisão no caso concreto, e isso me assusta. Furtos consumados, crimes econômico-financeiros não são mais passíveis de prisão preventiva. O juiz ficará de mãos atadas se, por exemplo, um acusado ameaçar uma testemunha. O curioso é que as convenções internacionais consideram grave uma pena igual a 4 anos, no Brasil não. Não tenho só críticas. Considero válida a inserção no Código de medidas alternativas à prisão.

CC: Não é a consagração do princípio de que só vai para a cadeia o ladrão de galinha?

FDS: Não posso negar que, ao se fazer um estudo nas cadeias brasileiras, só vamos encontrar pessoas de baixa estatura econômica. E o Judiciário existe para igualar, justiça significa olhar o outro e igualar, ela é condição de bem-estar social e jamais pode ser dissociada da realidade, da sua utilidade. A tarefa do Judiciário é a correção de rumos. O país peca por, insistentemente, não querer as mudanças necessárias e adequadas. Participei recentemente de um seminário internacional no Peru e as discussões, lá, eram como tratar as organizações criminosas, que são devastadoras do Estado, capazes de influenciar na vontade da Polícia, do Ministério Público, dos políticos e do juiz. Temos de impedir que o crime organizado tome o controle como tem ocorrido em vários países.

CC: O Brasil corre esse risco?

FDS: Não tenho dúvida, o tráfico de drogas usa o País como um corredor natural de distribuição. Fico surpreso com o atual nível de discussão na sociedade. A Marcha da Maconha, para mim, é um exemplo claro do estado de secessão da sociedade brasileira.

CC: Por quê?

FDS: A preocupação de um grupo de privilegiados é com a liberação de uma droga, mas a lei já é totalmente benevolente. Não vejo no Brasil uma marcha por uma educação pública de qualidade, porque não é uma preocupação das elites dominantes, ou pelo combate à corrupção, que é avassaladora. Não vejo uma marcha por uma saúde pública de qualidade. Por quê? Porque as pessoas privilegiadas estão preocupadas em descriminalizar o uso da maconha. Agora, veja, na questão das drogas, o País praticamente já descriminalizou, pois hoje o juiz só pode oferecer ao consumidor uma medida educativa.

CC: Como lidar com o assunto? A repressão, a guerra às drogas, não tem obtido muitos avanços.

FDS: O risco de se liberar simplesmente o consumo de drogas é o de se perder o controle sobre a saúde pública. A discussão tem de partir de até que ponto o País está pronto para assumir essa massa de viciados que virá com a liberação. Na Nova Zelândia, por exemplo, a BZP, uma droga sintética, foi permitida em determinado momento. Perceberam-se depois seus efeitos danosos. Primeiro, o governo tentou reduzir a distribuição. Por fim, decidiu proibir o consumo novamente. O Brasil não está preparado para receber massa nenhuma de viciados. Não cuidamos nem dos que existem hoje.
 
Fonte: Carta Capital n˚ 653 - “Não Me Arrependo”
Por Sergio Lirio
 
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sábado, 18 de junho de 2011

O perigoso charme do Supremo

Fernando Abrucio
Revista Época
FERNANDO ABRUCIO é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA.
 
A agenda mais importante do país vem sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal. Temas como liberdades individuais, organização do sistema político e regras definidoras das políticas públicas agora são centrais na pauta do STF. Nada de errado, a princípio, pois a Corte Constitucional de um país democrático é um lugar privilegiado do jogo político, como nos EUA e na Alemanha. O problema é que a maior repercussão política do Supremo ocorre sob o silêncio dos partidos em relação às questões mais estruturais do país.
O aumento do poder do STF tem sido interpretado, geralmente, de dois modos. De um lado, há aqueles que louvam a visão progressista de seus ministros, capazes de resolver de forma parcimoniosa problemas como o da reserva Raposa Serra do Sol ou de solucionar questões que o Congresso evita deliberar, como a união homoafetiva ou a recente decisão contra a guerra fiscal. De outro, existem os críticos a esta maior judicialização da política, uma vez que os togados não foram eleitos pelo povo e estariam usurpando funções dos que têm voto – como no caso da verticalização das eleições.
As duas interpretações contêm parcelas da verdade. Obviamente que é perigoso repassar a não eleitos atividades que deveriam ficar com os políticos, depositários últimos da soberania popular. Mas também é fato que o Supremo tem garantido espaço a uma agenda essencial ao país que não tem sido resolvida pelo Congresso Nacional. Por essa razão, a legitimidade do STF tem se fortalecido, tornando a instituição cada vez mais respeitada.
Mais ativista, o Supremo Tribunal Federal gera, a um só tempo, desequilíbrio na relação entre os Poderes e aumento da necessidade de atuação do Executivo e, sobretudo, do Legislativo em temáticas centrais para a sociedade. Em outras palavras, o STF pode se envolver nas funções dos demais, mas também incentivá-los a reagir e a atuar mais intensamente na agenda que interessa ao país. No jogo entre esses dois vetores, nem sempre a melhor resposta será obtida. Talvez somente o aprendizado cotidiano com o sistema democrático nos leve, ao longo do tempo, a melhores resultados.
O Supremo está discutindo o que deveria ser debatido pelos partidos – da marcha da maconha às cotas
O ponto mais preocupante não está numa pretensa usurpação de poderes, embora, por vezes, ministros togados exagerem no exercício de seu poder. Também não creio, em hipótese alguma, no esvaziamento do Executivo ou do Legislativo por conta do ativismo do Supremo. O Executivo continua com grande força por conta de seus instrumentos burocráticos, financeiros e políticos. A centralidade da Presidência no sistema político é evidente. O Congresso em muitas ocasiões abdica ou delega poderes, mas também é fato que assuntos fulcrais passam por sua alçada, como recentemente foram os casos do Código Florestal e do sigilo dos documentos oficiais.
O STF está discutindo aquilo que deveria ser debatido pelos partidos políticos e estes, infelizmente, não conseguem se posicionar sobre o que mais importa à sociedade brasileira. Afinal, para além dos discursos genéricos e vazios, qual é a visão de PT e PSDB sobre a reforma tributária? Alguém pode dizer que essa é uma questão muito complexa. Retruco: em relação ao Código Florestal, tão em voga e que será definido em breve pelo Congresso Nacional, o que tucanos e petistas pensam como agremiação política? Passando para o terreno dos valores, o que as duas maiores siglas do país acham da decisão do Supremo de liberar a “marcha da Maconha”? Ou sobre as cotas para negros, tema que será definido pelos ministros togados no próximo semestre?
Poderia fazer essas mesmas perguntas ao PMDB, DEM, PSB e outros. Obviamente que não as faria ao PSD, que já se disse ser de todos os espectros ideológicos. Se a resposta permanecer basicamente a mesma, fica a constatação de uma grande preocupação: os partidos não discutem e nem se definem em relação ao que é central na agenda do país. No contraste com esta situação, e diante da fragmentação da sociedade brasileira, é que se afirma o perigoso charme do STF.

Fonte: Revista Época

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segunda-feira, 6 de junho de 2011

"Nenhuma democracia é viável com 27 partidos"

Ricardo Lewandowski - Spacca - Spacca
Para que a reforma política traga mudanças efetivas para o sistema eleitoral brasileiro é preciso acabar com a possibilidade de se fazer coligações nas eleições proporcionais, limitar gastos de campanha e proibir empresas de financiá-las, e criar uma cláusula de barreira razoável para excluir do cenário político as legendas de aluguel.
Esses são alguns pontos que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Ricardo Lewandowski, considera que não podem escapar de um texto que se proponha a aperfeiçoar o sistema eleitoral e político do país. Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Lewandowski se revela crítico do elevado número de legendas que existem no Brasil e reclama da falta de partidos fortes e de eleições em que sejam discutidas ideias, e não onde candidatos sejam vendidos como sabonetes.
“Nenhuma democracia é viável com 27 partidos, dos quais muitos têm vida apenas em momentos eleitorais e se valem de verbas do fundo partidário e do horário gratuito no rádio e na televisão para os propósitos mais diversos, dificultando a governabilidade”, afirma o ministro, que também compõem o Supremo Tribunal Federal.
Lewandowski lembra que o Supremo julgou inconstitucional a cláusula de barreira, que foi aprovada exatamente para evitar a proliferação de partidos de araque. Mas explica que a regra não era razoável e que, mesmo com a decisão, ainda existe “espaço para que o Congresso legisle de forma apropriada, para não alijar os partidos ideológicos e programáticos, os partidos tradicionais que historicamente tiveram um papel importante no país”.
Atualmente, há duas comissões especiais no Congresso Nacional — uma no Senado e outra na Câmara dos Deputados — cujo objetivo é traçar a reforma política. Entre as muitas propostas e ideias em discussão, destacam-se o fim das coligações, do voto obrigatório e da reeleição, a possibilidade de proibir doações de pessoas jurídicas, entre outras.
A substituição do sistema eleitoral proporcional pelo de listas fechadas apresentadas pelos partidos ou pelas diversas modalidades de voto distrital é um dos pontos mais polêmicos da reforma. Nesta entrevista, Lewandowski analisa cada um dos pontos da possível reforma, comenta sobre os limites da atuação do Supremo na esfera política, concorda que há restrições demais para a propaganda eleitoral e insiste na ideia de que o período de campanha eleitoral deveria ser maior.
“Quando as campanhas são muito curtas, há certa artificialização dos candidatos, que são vendidos como mercadoria. O marketing predomina sobre o conteúdo, o aspecto externo sobre o aspecto substantivo”, defende o ministro.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor avalia o sistema eleitoral proporcional?
Ricardo Lewandowski — Em nosso sistema proporcional, criado para a expressão das minorias, o partido elege tantos deputados quantos resultarem do número de votos recebidos, dividido pelo quociente eleitoral. O quociente eleitoral, por sua vez, é obtido com a divisão dos votos válidos apurados em determinada eleição pelo número de deputados. Essa metodologia, boa a princípio, apresenta problemas quando conjugada com a grande dimensão do distrito eleitoral (todo o estado), o enorme número de candidatos e a lista aberta.
ConJur — Quais problemas?
Lewandowski — O sistema contribui para encarecer as eleições e aumentar a distância entre eleitores e candidatos, dando vantagem às celebridades e àqueles que têm mais dinheiro. E traz outras distorções que confundem o eleitor. É que o eleitor ao votar em determinado candidato vota também nos partidos, vendo-se frustrado porque, muitas vezes vota em “fulano”, mas elege “beltrano” e mais “sicrano”. Esse quadro é agravado quando conjugado com as coligações partidárias, pois elas são, por definição, incompatíveis com o sistema proporcional, que busca dar voz às minorias.
ConJur — Agravado por quê?
Lewandowski — Penso que os problemas se agravaram depois que a Emenda Constitucional 52 pôs fim à verticalização das coligações, antes estabelecida pelo TSE, retirando delas qualquer sentido ideológico ou programático que deveria resultar da associação de partidos. A eficácia dessa emenda foi adiada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, que entendeu que a sua vigência imediata colidia com o principio da anualidade previsto no artigo 16 da Constituição.
ConJur — A adoção da lista fechada seria uma alternativa?
Lewandowski — Com a lista fechada, ou pré-ordenada, se pretende fortalecer os partidos, deixando às suas convenções a designação dos candidatos, escolhidos pelos votos obtidos dentro dos próprios partidos. Quanto mais votos tiver o partido, mais candidatos elegerá, distribuindo-se as vagas na ordem decrescente das listas. Esse sistema, embora, em tese, fortaleça os partidos, tem a desvantagem de perpetuar as oligarquias partidárias, segundo a famosa “lei de ferro das oligarquias”, enunciada pelo sociólogo alemão Robert Michels, no início do século XX, que leva à cristalização das lideranças nos sindicatos e agremiações políticas.
ConJur — Não seria uma boa alternativa, então?
Lewandowski — Para mim, as listas fechadas só deveriam ser adotadas se e quando tivermos uma maioria de partidos minimamente ideológicos e programáticos, e desde que haja mecanismos que garantam uma participação ampla da militância na sua elaboração, nos vários níveis partidários. Essa forma de escolha dos candidatos, ademais, frustra os eleitores, que não podem mais escolher os seus candidatos, traz o problema da alternância de gênero (hoje 30% e 70%), além de levar a uma judicialização dos conflitos internos dos partidos.
ConJur — E qual sua opinião sobre o chamado distritão?
Lewandowski — Quando se adota o distritão, elimina-se o sistema proporcional e, portanto, a expressão das minorias. Opta-se pelo critério simplesmente majoritário, sendo eleitos os candidatos mais votados no estado ou no distrito. Esse sistema, além de enfraquecer os partidos, favorece os candidatos mais ricos ou famosos. Ou seja, fomenta o personalismo.
ConJur — E as outras formas de voto distrital?
Lewandowski — O sistema distrital puro, embora propicie uma maior aproximação entre os candidatos e seus eleitores e leve a um barateamento das eleições, em razão da redução do tamanho dos distritos, impede, igualmente, a expressão das minorias, além de favorecer o paroquialismo ao acarretar o surgimento de uma espécie de “vereadorzão” federal ou estadual.
ConJur — E o voto distrital misto?
Lewandowski — No sistema distrital misto, que combina as virtudes de ambos os sistema — o proporcional e o majoritário — o eleitor tem dois votos, um no candidato e outro no partido. Seria o ideal, se estivéssemos na Alemanha, país denso demograficamente. Mas aqui não existem, como regra, partidos ideológicos ou programáticos. Além disso, nos estados do Norte, as populações concentram-se nas capitais, dificultando a definição de distritos equilibrados. E teríamos, nesse sistema, dois tipos de deputados, um com uma visão predominantemente local e outro com uma perspectiva mais nacional.
ConJur — Não existem outras alternativas?
Lewandowski — Há uma proposta do professor José Afonso da Silva, segundo a qual se faria a divisão do estado em distritos menores, em número três vezes superior ao de deputados daquela unidade da federação. A votação seria feita pelo sistema proporcional e não pelo sistema majoritário, com uma importante diferença: os candidatos não seriam eleitos pelos distritos, mas votados nos distritos e escolhidos segundo o número de votos obtidos pelos partidos. A vantagem desse sistema é que ele preservaria as minorias, aproximaria o candidato dos eleitores, baratearia as eleições e poderia, teoricamente, ser adotado por lei ordinária.
ConJur — Em relação ao sistema distrital, há mais alguma proposta debatida?
Lewandowski — Outra proposta que corre é a adoção do voto distrital combinado com o sistema majoritário nas eleições municipais, em cidades com mais de 200 mil eleitores, por lei ordinária, pois o artigo 45 da Constituição menciona o proporcional apenas para os parlamentares federais, estaduais e distritais.
ConJur — Como seriam fixados os distritos?
Lewandowski — Quando se fala em distritos, seja qual for o seu tipo, surge logo a discussão relativa a quem faria a divisão, se o Congresso ou a Justiça Eleitoral, e acerca dos critérios adotados: densidade populacional, dimensões geográficas, revisão periódica etc. Nos Estados Unidos, cunhou-se a célebre expressão gerrymandering, que vem da manipulação de distritos eleitorais realizada pelo governador de Massachussets, Elbridge Gerry, nas eleições de 1812, em favor do Partido Republicano, nas quais um dos distritos, segundo os jornalistas, tomou a forma de uma salamandra, salamander em inglês. O termo vem da conjugação de Gerry+mander.
ConJur — A configuração dos distritos pode ter alguma outra finalidade?
Lewandowski — Sim, a manipulação dos distritos pode ser empregada também afirmativamente para favorecer politicamente certas minorias ou determinados grupos étnicos.
ConJur — Há outros pontos em discussão, como o financiamento público de campanhas eleitorais, proibição da reeleição, voto facultativo. O que o senhor pensa, por exemplo, do debate em torno do fim do voto obrigatório?
Lewandowski — Penso que o voto facultativo já existe no Brasil, pois o eleitor pode justificar com facilidade a sua ausência ou pagar uma multa irrisória se não o fizer. Ou até deixar de pagá-la, se comprovar insuficiência de recursos. Mas creio que o voto facultativo, no atual estágio de nosso desenvolvimento político, favoreceria as elites, enfraqueceria as instituições republicanas e estimularia o desinteresse do povo pelos assuntos coletivos.
ConJur — E quanto à proibição da reeleição?
Lewandowski — Reconheço que a possibilidade de reeleição para os cargos do Executivo aguça a tentação do emprego da máquina administrativa para fins ilícitos, prática que pode ser evitada pelo endurecimento das regras contra o abuso de poder político e econômico nas eleições. Lembro que a reeleição é adotada com o propósito de se evitar a descontinuidade administrativa. Um dado interessante é que, nas últimas duas últimas eleições gerais, 70% dos candidatos à reeleição para governador obtiveram êxito. Isso demonstra que os que se encontram no exercício do poder têm, em tese, maior facilidade para se reeleger. Destaco, ainda, que, desde a implantação da reeleição no país, 75% das cassações de mandato de governadores no Tribunal Superior Eleitoral ocorreram por abuso de poder econômico ou político, principalmente pelo uso indevido da máquina administrativa.
ConJur — Mas o senhor é a favor ou contra a reeleição?
Lewandowski — A reeleição é um instrumento de continuidade administrativa importante. Penso que quatro ou cinco anos é um período relativamente curto para se terminar os projetos de uma administração. Mas é necessário aperfeiçoar os instrumentos de controle de uso da máquina administrativa. Em tese, eu seria contra porque ainda há fragilidade nos instrumentos de fiscalização. Mas se nós conseguirmos aprofundar a fiscalização, podemos conviver bem com a reeleição. A Justiça Eleitoral está cumprindo seu papel nesse sentido.
ConJur — A maior parte dos escândalos políticos passa pelo financiamento privado de campanhas eleitorais. O financiamento não deveria ser público?
Lewandowski — Sou favorável ao financiamento público das campanhas. Entendo que ele deve ser predominante, embora não exclusivo, eliminando-se apenas as doações das pessoas jurídicas. Penso que é um direito político — e, portanto, fundamental — do eleitor fazer uma contribuição financeira para os seus candidatos preferidos, como ocorreu na eleição de Barack Obama.
ConJur — É possível adotar uma cláusula de barreira para partidos políticos?
Lewandowski — Temos hoje um número excessivo de partidos políticos. São 27 agremiações, das quais muitas têm vida apenas em momentos eleitorais e se valem de verbas do fundo partidário e do horário gratuito no rádio e na televisão para os propósitos mais diversos, dificultando a governabilidade. Recordo que o Supremo derrubou a cláusula de desempenho existente (ADI 1.351) por entender que ela, criada por simples lei ordinária, conflita com os valores constitucionais do pluralismo político, do pluripartidarismo e da ampla liberdade de criação de partidos. O STF assentou que se tratava de uma restrição rechaçada pelo Congresso na revisão constitucional de 1993. Mas ela foi, depois, introduzida na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95), a qual estabeleceu restrições que o STF entendeu ofensivas aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
ConJur — Como assim?
Lewandowski — É que ela passou a exigir dos partidos o apoio de, no mínimo, 5% do total dos votos apurados, não computados os brancos e nulos, para cada eleição à Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos um terço dos estados, com um mínimo de 2% do total de cada um deles. Os partidos que não alcançassem esse desempenho não teriam funcionamento parlamentar, fariam jus a somente 1% das verbas do fundo partidário e teriam o tempo de apenas dois minutos, por semestre, para a propaganda eleitoral, limitada à cadeia nacional.
ConJur — Mas há alguma forma de impedir a atuação das legendas de aluguel?
Lewandowski — Apesar dessas dificuldades e apesar do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, o Congresso tem que buscar uma forma de fazer com que não exista essa proliferação de partidos políticos. Porque nenhuma democracia é viável com 27 partidos políticos.
ConJur — O Congresso deveria criar mecanismos que não contrariassem a decisão do Supremo nessa matéria?
Lewandowski — Sim. Os parlamentares podem explorar os espaços que o Supremo deixou quando julgou inconstitucional a cláusula de desempenho e procurar elaborar uma legislação que não ferisse os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Mas, a meu ver, pela manifestação do Supremo, isso teria que ser feito por emenda constitucional, e não por mera lei ordinária. Acredito que exista espaço para que o Congresso legisle de forma apropriada nesse sentido, para não alijar os partidos ideológicos e programáticos, os partidos tradicionais que historicamente tiveram um papel importante no país.
ConJur — O Tribunal Superior Eleitoral discute hoje um processo em que um candidato acusa o adversário de fazer propaganda antecipada pelo Twitter. Não há restrições demais para propaganda eleitoral?
Lewandowski — Inicialmente, é importante dizer que não é a Justiça Eleitoral que está impondo restrições. É a própria lei eleitoral que as impõe. Nós não criamos as normas e as regras restritivas. O Congresso Nacional entendeu por estabelecer essa verdadeira camisa de força no que diz respeito à manifestação não só dos partidos políticos, como também dos próprios políticos. Essa legislação poderia ser alterada em dois aspectos. Primeiro, antecipando-se o início da campanha política. Depois, liberalizando-se a manifestação do pensamento na internet, durante a campanha, ressalvados apenas os abusos.
ConJur — Três meses de campanha antes das eleições é pouco?
Lewandowski — É muito pouco para que o cidadão conheça em profundidade o seu candidato. Eu diria que, nos anos eleitorais, a permissão para fazer campanha poderia começar já em janeiro, que é quando ganham força as articulações políticas. O ideal seria que tivéssemos um processo como nos Estados Unidos, com as pré-convenções, as convenções, onde a sociedade participa intensamente. Quando as campanhas são muito curtas, há certa artificialização dos candidatos, que são vendidos como mercadoria. O marketing predomina sobre o conteúdo, o aspecto externo sobre o aspecto substantivo. Se alargássemos o período de campanha eleitoral, os aspectos substantivos, a qualidade, as ideias dos candidatos, poderiam ser mais destacados do que os aspectos cosméticos.
ConJur — Recentemente, ao negar liminares de candidatos que sustentavam que as vagas abertas na Câmara deveriam ser preenchidas pelos suplentes dos partidos, e não das coligações, o senhor escreveu que não cabe ao Supremo fazer a reforma política. Quais os limites da atuação da Corte na esfera política?
Lewandowski — Quando assumi a Presidência do TSE, eu disse que os protagonistas da política são os políticos, não a Justiça Eleitoral. Estendo esse raciocínio para a intervenção do Poder Judiciário em relação às regras eleitorais. Eu me filio à escola da Suprema Corte americana, no sentido de que nós devemos exercer uma autocontenção em matéria política, porque atuamos em um campo delicadíssimo, que é o campo da expressão da soberania popular.
ConJur — Há hoje no Supremo uma ação (ADPF 155) na qual o PSDB contesta a interpretação do TSE de dar posse aos candidatos derrotados depois da cassação de governadores eleitos em segundo turno. O STF deve intervir nessa questão ou é mais uma matéria que exige resposta do legislador?
Lewandowski — Neste caso, considero que temos um campo interpretativo bastante interessante, porque as regras não são explícitas. O que se reclama é justamente de um ativismo do TSE no sentido de se dar posse ao segundo colocado quando não há previsão legal. Sou o relator desse processo, que é complexo. Quando votei aqui no TSE no caso do Maranhão [em 2009, o TSE cassou o então governador Jackson lago e deu posse à segunda colocada, Roseana Sarney], esclareci que acompanhei a jurisprudência da Corte Eleitoral, até porque era juiz substituto, não queria inovar, mas me reservava o direito de reexaminar esse tema.
ConJur — Que outros problemas a reforma política poderia atacar?
Lewandowski — Outro problema crônico no Brasil é a desproporção na representação dos estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados, estabelecida no artigo 45, parágrafo 1º da Constituição, que atenta contra o equilíbrio federativo. A regra valoriza desproporcionalmente os eleitores de certas unidades federadas em detrimento de outros, aos quais atribui peso diferenciado.
ConJur — O que o senhor pensa sobre as candidaturas avulsas?
Lewandowski — A proposta da adoção de candidaturas avulsas para as eleições municipais, desde que apoiadas por, no mínimo, 10% do eleitorado, milita claramente contra o fortalecimento dos partidos que se pretende com a reforma política.
ConJur — Qual sua opinião sobre submeter a consulta popular a aprovação da reforma política?
Lewandowski — Penso que ela está de acordo com a democracia participativa inaugurada pela Constituição de 1988, cujos principais instrumentos estão previstos em seu artigo 14. Creio, inclusive, que talvez seja essa a oportunidade de fortalecer ou facilitar o emprego desses instrumentos, especialmente a iniciativa legislativa popular, cujo exercício ficou praticamente inviabilizado pelas regras do artigo 61, parágrafo 2º da Constituição [a regra exige que a proposta seja assinada por 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco estados, com não menos de um 1/10 em cada um deles]. Uma das vantagens disso seria trazer o povo para dentro do Congresso Nacional, que, assim, deixaria de ser pautado predominantemente pelo Executivo, que envia, em cada legislatura, centenas de medidas provisórias e projetos de lei de seu próprio interesse para exame dos parlamentares.
ConJur — Por que vale a pena mudar o sistema eleitoral que vigora no Brasil desde 1932?
Lewandowski — Creio que os sistemas eleitorais constituem um meio, um instrumento, para atingir determinados fins, em especial o de captar de modo mais fiel possível a vontade soberana do eleitor. Mudar por mudar seria como empreender uma viagem sem saber aonde exatamente se quer chegar, ou seja, caminhar sem rumo e sem plano.
ConJur — Qual seria, então, o primeiro passo para mudar com rumo certo?
Lewandowski — Talvez valesse à pena fazer uma discussão ampla acerca da democracia que queremos e só depois fazer as mudanças necessárias para alcançá-la. Se isso não for possível, penso que seria factível fazer algumas mudanças tópicas para aperfeiçoar o sistema que já vigora por quase 80 anos, de modo a evitar as distorções existentes, sem prejuízo de reajustá-lo periodicamente para eventuais correções de rumo.
ConJur — Tramitam no Senado e na Câmara diversos projetos que dizem respeito à reforma política e que tratam da maioria dos pontos que discutimos. Quais mudanças seriam mais importantes?
Lewandowski — Se eliminássemos as coligações nas eleições proporcionais, limitássemos os gastos de campanha, proibíssemos o financiamento de pessoas jurídicas e introduzíssemos uma cláusula de desempenho inteligente e razoável teremos andado um bom caminho.

Fonte: Consultor Jurídico

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domingo, 29 de maio de 2011

ENTREVISTA: Peter Häberle

No dia 28 de agosto de 2008 a advogada Joênia Batista de Carvalho fez história: ela se tornou a primeira índia brasileira a fazer sustentação oral no Supremo Tribunal Federal. Por trás desse fato histórico, está o pensamento de um dos mais destacados constitucionalistas contemporâneos e um dos mais influentes doutrinadores do Judiciário brasileiro. Trata-se do alemão Peter Häberle, o criador do amicus curiae, o instituto jurídico que permitiu a Joênia ocupar a tribuna do Supremo no julgamento sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Häberle sustenta que a Constituição é capaz de prescrever valores que fundamentam culturalmente uma sociedade aberta. Grosso modo, é o mesmo que dizer que a Carta Magna é um processo aberto, um projeto para o futuro.
Na lucidez de seus 77 anos, Häberle conversou com a reportagem da Consultor Jurídico duas vezes na semana passada, no que resultou a entrevista que segue abaixo. A primeira delas foi na segunda-feira (23/5), em São Paulo, num intervalo do Encontro Brasil-União Europeia, promovido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. No dia seguinte ele voltou a falar com a ConJur, desta vez em Brasília, onde estava para participar do Seminário Internacional Constituição e Direitos Fundamentais.
Häberle fala de Constituição com amor. E do Brasil também. No meio da entrevista, abriu uma pausa para fazer uma declaração de amor ao país que visita pela terceira vez. Começou fazendo uma correção necessária, a seu ver: “O escritor austríaco Stefan Zweig escreveu que o Brasil é o país do futuro. Na minha opinião, o Brasil é o país do presente e do futuro”.
O professor rejeita dois termos da moda para classificar os países: 'emergente' e 'em desenvolvimento'. Para ele, essas expressões levam em conta apenas o que chama de “economicização”. E dá como exemplo o Brasil 'emergente' e o Peru 'em desenvolvimento': “Pra mim importa tão somente que o Brasil e o Peru sejam Estados constitucionais. Em outras palavras, importa que eles são países que reconhecem a dignidade da pessoa humana, que contêm um catálogo de direitos humanos, que prezam a democracia pluralista, a divisão dos poderes, a proteção das minorias, e que dispõem de uma jurisdição constitucional em boas condições de funcionamento”.
As palavras coincidem com o que ele escreve em sua obra Constitución como cultura (1982). De acordo com o professor, a Constituição não é apenas um “texto jurídico ou um código normativo, mas também a expressão de um nível de desenvolvimento cultural” e um instrumento da “representação cultural autônoma de um povo”.
Leia a entrevista abaixo:
ConJur — Qual imagem o senhor tem do Supremo Tribunal Federal?Peter Häberle — Eu sou um grande admirador do Supremo Tribunal Federal e do ministro Gilmar Mendes, que é um constitucionalista líder no Brasil. Eu gosto de caracterizá-lo na Europa com um construtor de pontes entre a Alemanha e o Brasil, e entre o STF, sobretudo, e o Direito Processual Constitucional. Ele recepcionou a minha proposta do amicus curiae, por exemplo.
ConJur — E isso tem a ver com o conceito que o senhor desenvolveu no livro Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição e que foi traduzido pelo ministro Gilmar Mendes, certo?
Häberle — Sim, essa idéia também é proposta pela sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Trata-se de um livro que escrevi em 1975 e que foi excelentemente traduzido e comentado pelo ministro Gilmar Mendes. Poderíamos dizer, no sentido filosófico, que a idéia da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição significa que toda e qualquer pessoa que leia livremente a Constituição acaba sendo co-intérprete do texto. Essa idéia é a expressão da teologia no protestantismo alemão. Eu só adquiri consciência disso mais tarde, e o paradigma da sociedade aberta hoje pode ser estendido na direção da comunidade internacional, da comunidade de entes do Direito Internacional Público, do Jus Gentium. Coloca-se aqui a pergunta: Quem cria o Direito das Gentes e quem o interpreta? Não são apenas os Estados e não são apenas os grandes doutrinadores. Nesse contexto, os mais importantes intérpretes são organizações não-governamentais, como, por exemplo, o Greenpeace e a Anistia Internacional. O Direito das Gentes é, na minha perspectiva, o Direito Constitucional da Humanidade. Por isso, os 196 membros da ONU são sujeitos imprescindíveis do Direito das Gentes. Mas o Direito das Gentes é também co-desenvolvido por relações pela internet, por tribunais constitucionais de grande qualidade ou também pela Corte Penal Internacional e pelos Tribunais Especiais das Nações Unidas, como os que existem na Holanda e na Iugoslávia.

ConJur — O Brasil experimenta um momento de abertura da jurisdição constitucional, com transmissão ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal e realização de audiências públicas, por exemplo. O senhor acha que a população pode acreditar que essa Corte tem a missão de representá-la e de atender às suas vontades?
Häberle —
Eu acompanho essa democratização com grande entusiasmo e acompanho com igual entusiasmo a tendência de dar publicidade às sessões do STF. Mas tal orientação pode envolver também riscos e perigos. O legislador parlamentar é dotado de legitimação democrática direta, uma vez que é eleito pelo povo, ao passo que os juízes do STF têm legitimidade apenas indireta e mediada. O que me alegra é saber que o Supremo é a expressão de uma sociedade de intérpretes da Constituição que se abre cada vez mais. O STF está em vias de se transformar em um Tribunal do Cidadão. Os jovens tribunais constitucionais precisam investir esforços para criar uma sociedade civil. Vemos quão difícil seria, vemos o quão difícil é implementar essa tarefa na Líbia, por exemplo, e o quão difícil é desenvolver nesses países uma sociedade civil. Para uma sociedade lícita e cidadã, é imprescindível a existência de um Judiciário constitucional concebido como um Judiciário cidadão. Essas audiências públicas são um meio para este fim.

ConJur — O Brasil, nos últimos anos, decidiu temas polêmicos por meio do STF. É o caso das pesquisas com células-tronco e da fidelidade partidária, por exemplo. Esse crescimento da atuação da jurisdição constitucional é resultado da democracia ou a enfraquece?
Häberle —
A sua pergunta relaciona dois opostos: o ativismo judicial e a retração dos tribunais. Na verdade, essa pergunta é mais que justificada em todos os Estados constitucionais dotados de um Judiciário constitucional. Comecemos com o caso dos Estados Unidos, onde viveu-se, na Corte Suprema, a idéia do ativismo judicial. O Tribunal Constitucional Alemão também praticou esse ativismo de forma intensa, depois de 1989. Agora vem a argumentação contrária: alguns doutrinadores defendem a idéia de que o juízes deveriam se restringir mais, deixando o primeiro plano e a iniciativa ao legislador parlamentar. É imensamente difícil, até para o juiz do tribunal constitucional, definir quando é a hora do ativismo judicial e quando é a hora da retração judicial. Mas eu quero dar uma resposta. O legislador parlamentar alemão, que eu cito aqui exemplificativamente, na maior parte das vezes não estaria em condições de decidir a questão das células-tronco e da proteção aos embriões. Então, provavelmente, o Tribunal Constitucional Federal tomaria a frente. A instituição do voto especial, que muitas vezes é o voto vencido, deve ser mencionada nesse contexto. Esse instituto foi inventado pelos americanos. O voto vencido hoje é admitido pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão. Isso aparece no artigo 164, parágrafo 1, da Constituição. A instituição do voto especial ou do voto vencido é um caso feliz, é um caso afortunado.
ConJur — Por quê?Häberle — Para que a minoria social possa espelhar-se no voto vencido. A exemplo do que acontece nos Estados Unidos e na Alemanha, com o decorrer do tempo o voto vencido se transforma em um voto majoritário. Essa é uma dialética importante.
ConJur — O papel essencial de uma corte constitucional é o de ser contramajoritária. Como se encaixa nessa atribuição a tese da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição?
Häberle —
O paradigma da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição significa que cada cidadão e cada partido político que vive na Constituição são co-intérpretes desta Constituição. O judiciário constitucional possui legitimação democrática apenas indireta. O primeiro poder da República é o Parlamento. O legislador parlamentar tem legitimidade direta, pois é eleito pelo povo. Por isso é importante que a sociedade também tenha espaço para participar da interpretação da Constituição.
ConJur — No Brasil, os juízes do STF são escolhidos pelo presidente da República que, por sua vez, é eleito diretamente pelo povo. Isso não lhes confere igual legitimidade democrática?
Häberle — 
Os juízes da Corte Suprema americana ou do Tribunal Constitucional alemão são eleitos pelos partidos políticos. Na Romênia e na Itália, um terço dos juízes constitucionais são nomeados pelo presidente da República. O que é importante em todos esses tribunais é o pluralismo político. Como disse antes, no caso do Brasil, é importante ressaltar que, como no Tribunal Constitucional alemão e na Corte Constitucional espanhola, se admite a figura do voto vencido. Neste voto vencido, o pluralismo da sociedade pode espelhar-se. E o tempo nos ensina que o voto vencido de hoje é o voto majoritário de amanhã.
ConJur — O crescimento da jurisdição constitucional, do qual falamos há pouco, é, então, resultado da democracia?
Häberle —
De início, quero dizer duas palavras sobre a história da jurisprudência constitucional, no famoso caso Marbury versus Madison, de 1803, nos Estados Unidos. Ele é considerado a certidão de nascimento da jurisprudência constitucional no sentido material do termo, já que ali foi reconhecido um controle judicial das normas. O segundo grande passo foi a Constituição da Áustria, de 1920, elaborada com a ajuda de Hans Kelsen. A idéia da jurisprudência constitucional já foi desenvolvida pelo grande jurista austro-alemão. Depois da Segunda Guerra Mundial, a jurisdição constitucional estendeu-se pelo mundo inteiro. Penso que apenas a Grécia, e eu digo justamente a Grécia, porque a democracia foi inventada lá, não dispõe de uma jurisdição constitucional. Hoje eu defendo a seguinte opinião: a jurisdição constitucional é um instrumento sutil, detalhado e refinado da democratização de uma sociedade, desde que ela se comprometa com a tutela dos interesses da minoria.
ConJur — Como efetivar os direitos fundamentais previstos na Constituição sem que o Judiciário sofra acusações de promover o ativismo jurídico?Häberle — Sob uma perspectiva mundial, percebe-se que os tribunais constitucionais de diversas nações caracterizam-se por períodos de ativismo judicial — como os exemplos do Tribunal Constitucional húngaro depois de 1989 e da Corte da Comunidade Europeia, com sede em Budapeste, nos primeiros 20 anos da União Europeia — e outros espaços de tempo nos quais os tribunais entram em uma fase de jurisprudência mais restritiva. No caso do Brasil, é importante que o Supremo Tribunal Federal desenvolva muitos precedentes para dar eficácia aos direitos fundamentais. Mas há outras áreas nas quais os juízes podem exercitar a virtude da jurisprudência restritiva e deixar a iniciativa ao legislador parlamentar. Por isso foi muito positivo que o STF, ao reconhecer a união estável homoafetiva, tenha decidido deixar espaço também ao legislador ordinário para tratar do assunto. O tribunal constitucional nunca deverá arrogar-se o papel de preceptor da nação. O ideal é que ele consiga cooperar com os outros poderes da República.
ConJur — Hoje, há uma discussão muito forte no Brasil sobre os limites do ativismo jurídico. A tal ponto que, recentemente, foi apresentado um projeto de lei que dá poderes para o Congresso rever atos do STF quando entender que a Corte extrapolou suas atribuições. Como o senhor vê esse confronto entre Judiciário e Legislativo?
Häberle —
Primeiramente, gostaria de dizer que, como um hóspede do Brasil, gostaria de me restringir a análises acadêmicas e não me posicionar em relação a questões atuais de política. Mas, abstratamente, posso responder que seria perigoso se o Parlamento interferisse na jurisprudência em constante evolução de uma corte constitucional. Existem movimentos semelhantes a esse na Hungria e na Turquia. Nestes dois países, os membros do Parlamento também estão envidando esforços para reprimir a influência do Judiciário constitucional. Melhor seria se os juízes dos tribunais constitucionais exercitassem a virtude da jurisprudência restritiva em algumas questões, inclusive por razões de prudência política.
ConJur — O Mandado de Injunção, no Brasil, serve exatamente para que o Supremo Tribunal Federal dê eficácia a direitos constitucionais quando o Congresso se omite. O que o senhor acha desse instrumento?Häberle — É um instrumento inovador, excelente. Percebemos que nós, representantes dos velhos estados constitucionais europeus, temos muito que aprender com os novos estados constitucionais da América Latina. Isso é uma prova da correção da minha tese da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porque, neste caso, o cidadão torna-se legislador indiretamente mediante sua reclamação ao STF. Fico entusiasmado com essa valorização positiva do cidadão. Com isso, vocês conseguiram dar mais vida ao conceito de sociedade civil.
ConJur — O que o senhor acha do controle prévio de constitucionalidade?
Häberle —
O controle prévio de constitucionalidade não existe na Alemanha e existe há algum tempo na França. Na Alemanha, alguns anos depois da criação do Tribunal Constitucional Federal, cogitou-se a possibilidade de se solicitar um parecer, mas a ideia foi abolida em virtude de um conflito político entre o chanceler [Konrad Adenauer] e o primeiro presidente da República Federal da Alemanha [Theodor Heuss]. Na Alemanha, nós temos uma tutela excessivamente aperfeiçoada pelos Tribunais Constitucionais, por isso não necessitamos de uma jurisdição constitucional preventiva. Parece-me possível que em jovens Estados constitucionais o controle constitucional preventivo seja adequado. Isso, porque eles ainda não foram suficientemente educados para se conformarem à Constituição e a respeitarem.
ConJur — Esse fenômeno tem a ver com a ideia que o senhor tem da chamada pedagogia da Constituição?
Häberle —
 Sim. A pedagogia da Constituição ou pedagogia constitucional evidencia-se, por exemplo, no fato de a Constituição de Guatemala e de a antiga Constituição peruana determinarem que as crianças ainda nas escolas cursem uma disciplina chamada educação para os Direitos Humanos. Há poucos anos, a Espanha desenvolveu e criou o programa de cidadania por intermédio da educação e da cultura, e essa criação espanhola transcorreu com a minha ajuda científica. É importante que um jovem Estado Constitucional como o Brasil, apesar da sua Constituição muito extensa, consiga transmitir os princípios mais importantes aos jovens das escolas e das universidades, e isso em uma linguagem próxima ao horizonte de entendimento do cidadão. Permito-me aqui uma pequena ironia: essa transmissão também deve ser feita considerando a linguagem da mídia e dos jornalistas.
ConJur — A Constituição brasileira é muito longa e tem garantias que dizem respeito diretamente à vida das pessoas. Como conseqüência, as decisões do Supremo Tribunal Federal também acabam afetando a vida de muitas pessoas. É bom para um Estado que sua Constituição seja extensa?
Häberle —
Vamos começar com um raciocínio empírico: a história consigna exemplos de Constituições muito lacônicas. Tome como exemplo a Virgina Bill of Rights e a Declaração da Independência dos Estados. A lei fundamental alemã, que é a Constituição da Alemanha, é de 1949. Ela é incomumente lacônica e compreensível ao cidadão comum. Mais de 60 anos depois, foram mais de 55 emendas constitucionais. Elas quase desfiguraram a nossa Constituição, tornando-a ilegível. Costumo mencionar a Constituição da República Federativa do Brasil como exemplo de uma Constituição barroca. Pessoalmente aprecio mais as constituições tributárias, do estilo românico e do estilo gótico.
ConJur — É curioso e vale comentar que, mesmo sendo extensa, a Constituição brasileira já teve mais de 45 emendas.
Häberle —
Sim. A dificuldade do constituinte está em formular, na medida do possível, as tais cláusulas pétreas, e deixar os detalhes técnicos aos cuidados do legislador ordinário ou ao Direito Administrativo que regula as relações com o Estado. O constituinte tem o dever de encontrar soluções de meio termo que agradem todos os grupos sociais, como acontece na sociedade multiétnica que é o Brasil. Essa disposição de encontrar o meio termo conduz a uma Constituição mais extensa.
ConJur — O julgador pode ir contra a vontade das maiorias para cumprir a Constituição?
Häberle —
O critério da jurisdição constitucional só pode ser o da própria Constituição. O tribunal constitucional pode lembrar o legislador ordinário que a Constituição existe e é um critério que pode declarar nula uma lei ou construir para o legislador ordinário uma tarefa legislativa. Existe ainda o instrumento mais refinado da interpretação em conformidade com a Constituição que protege o legislador parlamentar, que é o do possível. De acordo com esse método, atende-se à lei interpretando-a de um modo compatível com a Constituição. Essa interpretação em conformidade com a Constituição é um método originário da Suíça, onde eu fui professor durante 20 anos.

Fonte: Consultor Jurídico

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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Supremo prepara-se para limitar julgamentos e fazer sessões reservadas

Autor(es): Juliano Basile e Maíra Magro | De Brasília
Valor Econômico - 23/05/2011
 
O Supremo Tribunal Federal (STF) está tomando uma série de medidas para julgar cada vez menos processos de pouca relevância e mais casos de grande importância para a sociedade. O objetivo, segundo esclareceu o presidente da Corte, ministro Cezar Peluso, em entrevista exclusiva ao Valor, é que o STF julgue um caso de extrema importância por mês, como ocorreu, em maio, quando foi tomada decisão a favor da união homoafetiva.
Para junho, Peluso pretende colocar em julgamento um processo que vai definir de uma vez por todas se os poupadores têm direito a correções em suas contas por causa da aplicação de índices a menor nos planos econômicos que vigoraram entre 1986 e 91. Em agosto, o tribunal deverá decidir se grávidas de fetos sem cérebro podem fazer abortos.
Peluso quer instituir no regimento do STF reuniões prévias entre os ministros antes dos grandes julgamentos. Isso faria com que todos chegassem com o caso pensado no dia de julgar, evitando pedidos de vista e discussões ásperas que são transmitidas ao vivo pela TV, constrangendo a Corte.
Ainda informais, as conversas prévias auxiliaram o julgamento sobre a união homoafetiva, que acabou em votação unânime e sem debates ríspidos na Corte. Peluso avaliou que aquela foi uma decisão coesa e bem recebida na sociedade e negou que o STF tenha adotado postura ativista, substituindo o papel do Congresso de legislar sobre o assunto. "O STF é passivo, não toma iniciativa de nada."
Para chegar à pauta de grandes casos, que deve dar maior peso político às decisões, o STF retirou, na noite de quarta-feira, uma série de ações do plenário, onde votam os 11 ministros. Agora, extradições, mandados contra decisões do TCU e ações que envolvem toda a magistratura ou metade dos membros de um tribunal serão decididas nas turmas. As turmas têm cinco ministros e sistema de votação mais ágil, em lista, na qual não é necessária a leitura do processo.
A distribuição de processos no STF será automática, e não mais em horários específicos. O tribunal determinou ainda que vários tipos de ações só serão aceitos pela internet, como: cautelares, rescisórias, habeas corpus, mandados de segurança e suspensões de liminar. Alguns casos de repercussão geral serão decididos no sistema de intranet dos ministros. E, por fim, eles decidiram priorizar o julgamento de ações de constitucionalidade no plenário.
Essas medidas foram um avanço. Mas, para Peluso, a verdadeira revolução seria a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Recursos. Se aprovada, a PEC fará com que muitos processos tenham solução na segunda instância, sem a necessidade de subir para o STF. Com isso, as primeiras instâncias do Judiciário teriam o seu trabalho mais valorizado e o Supremo, com menos processos para julgar, poderia se concentrar nos grandes julgamentos.
A seguir os principais trechos da entrevista.
Valor: O STF se transformou na 4ª instância de todos os processos do país? Esse sistema não deveria ser alterado?
Cezar Peluso: É inconveniente manter o sistema tal como está. Na verdade, inviabiliza a eficiência de todo o sistema judiciário. Sobrecarrega os tribunais superiores e não permite que as causas sejam decididas celeremente. Com isso, os tribunais superiores que não podem dar conta, pois recebem uma quantidade infinita de processos, acabam segurando tudo [todos os processos]. O sistema está travado. Esse é o ponto do estrangulamento do Judiciário.
Valor: Como resolver essa situação?
Peluso: Para desatar esse nó, precisamos retirar os efeitos suspensivos [que suspendem a decisão das primeiras instâncias] dos recursos extraordinários [ao STF] e dos recursos especiais [ao Superior Tribunal de Justiça]. De inicio, eu sugeri que fizéssemos uma PEC. Mas, conversei com Aloysio Nunes Ferreira [senador pelo PSDB de São Paulo] que perguntou se eu não achava melhor fazer por lei ordinária. Então, a PEC dos Recursos será desmembrada.
Valor: Advogados reclamam que essa limitação ao direito de recorrer aos tribunais superiores fere garantias individuais dos acusados.
Peluso: Não podemos imaginar que o Brasil, como único país do mundo com quatro instâncias, seja também o único com um sistema de garantias individuais. A maioria dos países tem duas instâncias e dá garantias. Em outras palavras, não é o excesso de instâncias que protege as garantias individuais. Senão teríamos que partir do pressuposto de que o Brasil é o único país com essa proteção.
Valor: Advogados também dizem que essa limitação a recursos no STF fere o princípio pelo qual todos são inocentes até o julgamento final.
Peluso: Em primeiro lugar, nós não temos uma cláusula constitucional que estabeleça a presunção de inocência. A Constituição diz que ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sua sentença. Então, isso não é presunção no sentido ordinário da palavra nem no sentido político. A garantia é de tratamento digno do réu enquanto a sentença não é definida. Em outras palavras, que o réu seja tomado como alguém com uma série de garantias enquanto a sua culpa não é definida. Por isso, não se justifica tomar sanção enquanto ele é réu. Na nossa proposta, não mudamos essa garantia. Todas as garantias dos réus são mantidas. O que a proposta faz é retirar o efeito suspensivo de dois recursos ao STF e ao STJ.
Valor: Quais são os advogados que são contrários à limitação dos recursos? É a OAB?
Peluso: São advogados seletos, cujos serviços são altamente valorizados. Os clientes são pessoas de mais posse e acho normal que eles possam ver certo incômodo para seus interesses profissionais. Agora, a grande maioria dos advogados só tem a ganhar. A queixa que eu ouvi em relação ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que tinha um estoque de 500 mil recursos, é a de que estavam quase morrendo de fome. Por quê? Porque como os processos não terminam os clientes não pagam.
Valor: Com essa limitação de recursos, o STF vai poder se concentrar nos casos realmente relevantes?
Peluso: A mudança vai aliviar o STF. Por quê? Porque, depois de uma decisão de 2ª instância, aquele que perde e sabe que não tem razão - e eles sempre sabem quando têm ou não razão - vai pensar duas ou três vezes antes de entrar com um recurso que não suspende a decisão. Por que usar os serviços bem remunerados de um advogado num recurso de perspectiva negativa? Eu acho que tudo está convergindo, num processo simultâneo, para, no fundo, transformar o STF numa Corte Constitucional, que julgue as grandes questões. Para que possa julgar com mais acuidade, com mais cuidado, se dedicar basicamente à sua atividade fundamental que são as ações que dizem respeito à sua função constitucional imediata.
Valor: As mudanças que o STF implementou até aqui, como súmula vinculante e repercussão geral, não resolveram o problema de excesso de recursos?
Peluso: Elas ainda não foram suficientes exatamente porque o sistema não foi alterado. Quando o STF reconhece a repercussão geral não sobem mais recursos. Então, houve alívio para o STF, mas não para o sistema. Ao invés de os recursos chegarem ao STF, eles ficam estocados nos tribunais.
Valor: Como deve ser o julgamento de grandes casos?
Peluso: Nesses temas mais sensíveis que despertam maior atenção, estou designando-os com antecedência para divulgar e permitir que os ministros se preparem. É para não chegar de uma semana para outra e o ministro ter que pedir vista, se preparar. Vou tentar colocar o caso da anencefalia [aborto de fetos sem cérebro] no começo de agosto. Vou anunciar antes para que os ministros tenham tempo para preparar votos. Isso vai permitir também que advogados, pessoas e organizações interessadas também se preparem. E a imprensa acompanhe. Fizemos isso no caso da união homoafetiva e vamos fazer com os planos econômicos, em junho.
Valor: O STF tirou várias ações do plenário e mandou-as para as turmas. Isso ajuda a liberar a pauta para decidir os grandes casos?
Peluso: Tiramos as extradições, os mandados contra atos do TCU e outros. As turmas decidem muito mais rapidamente do que o plenário. Isso vai aliviar o plenário, ajudar a descongestionar o STF e resolver os casos mais rapidamente. Hoje, a pauta está com 700 processos. Mas, quando colocamos um caso para votar, um ministro pode retirá-lo, pois pode estar em revisão. Então, a pauta não é um espelho fiel dos feitos para serem julgados. Estamos tentando apurar quais os feitos que hoje poderiam entrar na pauta.
Valor: Como construir decisões mais consensuais e evitar discussões ríspidas nos julgamentos?
Peluso: Eu não quero fazer uma previsão, mas não estranharia se pouco mais à frente aprovarmos uma emenda regimental permitindo que façamos reuniões reservadas. Não será para decidir, mas para preparar o julgamento reservadamente. Não há nada que impeça que os ministros se reúnam para preparar o julgamento, que discutam aspectos sobre como vão encaminhar o caso. Todo mundo ganha com isso. O julgamento da união homoafetiva foi tranquilo porque ministros conversaram antes. Ninguém pediu vista. Todo mundo saiu ganhando. Imagina se adia esse caso? A gente não sabe como voltaria.
Valor: Essa foi a decisão mais importante do STF nos últimos anos?
Peluso: Essa decisão sobre a união homoafetiva foi importante, em primeiro lugar, porque a Corte foi muito coesa, sem dúvidas e divergências essenciais de fundamentação. Isso mostra que o tribunal pode dar decisões adequadas para o aprimoramento da consciência democrática e da cidadania. E concorre em certa medida para inibir esses casos de violência e perturbação social.
Valor: O STF não se antecipou ao Congresso neste caso? O tribunal não está ativista, atuando na competência do Legislativo?
Peluso: O que chamam de ativismo é um convite constitucional. Na verdade, a Constituição, por ser extremamente analítica, leva à grande maioria de casos ao STF que tem que dar uma resposta. O STF é passivo, não toma iniciativa de nada. Ele é sujeito a demandas. A sociedade vem e pede uma resposta. Se o STF acha que não está invadindo a competência legislativa, ele dá essa resposta.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Horário de atendimento ao público dos órgãos jurisdicionais

Publicada em 28/4, a resolução 130/11 do CNJ determinou que expediente dos órgãos jurisdicionais para atendimento ao público deve ser de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h, no mínimo. A resolução deverá entrar em vigor após 60 a contar de sua publicação. Enquanto o Judiciário não ajusta seus ponteiros, confira os horários de atendimento que vigoram nos Estados brasileiros :
AC
7h às 18h
AL
7h30 às 13h30
AM
8h às 15h
AP
7h30 às 14h30
BA
8h às 12h e das 14h às 18h
CE
9h às 18h
DF
12h às 19h
ES
12h às 19h
GO
8h às 18h
MA
8h às 18h
MG
8h às 18h30
MS
12h às 19h
MT
12h às 19h
PA
8h às 14h
PB
12h às 19h e às sextas-feiras das 7h às 14h
PE
13h às 19h
PI
7h às 14h
PR
12h às 18h
RJ
11h às 18h
RN
7h30 às 14h30
RO
7h às 14h
RR
8h às 14h30
RS
9h às 19h
SC
12h às 19h
SE
7h às 13h
SP

12h30 às 19h
TO

8h às 11h e das 13h às 18h
__________
Fonte: Migalhas

terça-feira, 3 de maio de 2011

A blindagem do crime econômico

Fausto M. De Sanctis

O Senado Federal aprovou, em 7 de abril, o substitutivo ao Projeto de Lei nº 111, de 2008, da Câmara dos Deputados, que altera dispositivos do Código de Processo Penal (CPP) relativos a medidas cautelares como a prisão processual, a fiança e a liberdade provisória. A proposta, que na Câmara tramitou sob o número 4.208, cria medidas alternativas à prisão preventiva – mantida, porém, a prisão especial para autoridades e determinados profissionais.
O texto, que agora depende apenas da sanção da presidente Dilma Rousseff para entrar em vigor após 60 dias, consagra, no que se refere aos presos, o monitoramento eletrônico mediante concordância, a proibição de frequentar determinados locais ou a de se comunicar com certas pessoas e o recolhimento em casa durante a noite e nos dias de folga. A prisão, de fato, só se aplicará aos crimes considerados “de maior potencial ofensivo”, ou seja, aos crimes dolosos com pena superior a quatro anos ou nos casos de reincidência. Além disso, o projeto aprovado amplia os casos de concessão de fiança.
Alardeia-se que essas alterações no Código de Processo Penal diminuiriam o índice de presos provisórios existentes no país, que hoje chegaria a 44% da população carcerária atual. De fato, sua aprovação afastaria a possibilidade de prisão nos casos de crimes graves consumados, como o crime de quadrilha ou bando; autoaborto; lesão corporal dolosa, ainda que grave; maus tratos; furto; fraude; receptação; abandono de incapaz; emprego irregular de verbas públicas; resistência; desobediência; desacato; falso testemunho e falsa perícia; todos os crimes contra as finanças públicas; nove dos dez crimes de fraudes em licitações (o remanescente tentado), contrabando ou descaminho.
O projeto aprovado no Congresso Nacional também prevê o descabimento da prisão nos crimes tentados de homicídio, ainda que qualificado; infanticídio; aborto provocado por terceiro; lesão corporal seguida de morte; furto qualificado; roubo; extorsão; apropriação indébita, inclusive previdenciária; estupro; peculato; corrupção passiva, advocacia administrativa e concussão; corrupção ativa e lavagem de dinheiro. Também estariam afastados da prisão os autores de crimes ambientais e de colarinho branco – sejam consumados ou tentados – e ainda parte dos crimes previstos na Lei de Drogas, inclusive os casos de fabricação, utilização, transporte e venda tentados.
Em outras palavras, a prisão estará praticamente inviabilizada no país, já que se exige a aplicação, pelo juiz, de um total de nove alternativas antes dela, restringindo-a sensivelmente. O legislador resolveu “resolver”. O crime econômico e financeiro, em quase toda a sua extensão, ficou de fora. Aos olhos do legislador, o crime econômico não seria grave. Seria correta a concretização de um garantismo que nem o jurista e filósofo italiano Luigi Ferrajoli seria capaz de idealizar? Seria o direito penal do amigo? Por outro lado, o Congresso manteve a prisão em condições especiais para autoridades e para os detentores de diploma de curso superior. Temeu excesso de poder – preocupação, aliás, que não se observa para os que não detenham a benesse processual.
Se o projeto aprovado for sancionado e se tornar lei, vislumbra-se um processo penal de secessão, que representará um meio certo de alcançar um resultado, longe, no entanto, de constituir um instrumento legítimo. Trabalhar-se-ia com a ideia de que se não é bem entendido, não se reage, consuma-se e fulmina-se. O argumento de que “sempre foi assim” não pode paralisar o indivíduo e a sociedade e instrumentalizar o legislador. Exige-se uma forma de agir que nasça no âmbito de cada um, refletindo no tecido social e político, no qual “servir” dê o tom e não “ser servido”. Deferência aos atributos de honestidade, exemplaridade e respeito.
A democracia concretiza-se apenas quando quem toma decisões o faz em nome do interesse de todos. Educação, consciência cívica e cultura da licitude hão de ser a base para a virada real do país rumo ao futuro que desejamos, no qual as pessoas tomam a luta para si e sirvam de exemplo. Um lugar onde aves de rapina não mais encontrarão farelos humanos. O progressivo entendimento passa a ser senso comum. Aí sim a prisão cautelar encontrará o tratamento necessário. Um instrumento que, embora lamentável, é útil. E, principalmente, destinado aos graves crimes sem exceção, sujeitando todas as pessoas, independentemente do status econômico, social ou político.
Fausto Martin De Sanctis é desembargador federal em São Paulo e escritor
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Fonte: Valor Econômico