segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Revista Época: Luiz Fux: "É preciso dar segurança jurídica" (entrevista)


"O novo ministro do Supremo diz que a Justiça deve tornar previsível a vida das pessoas
O carioca Luiz Fux, de 57 anos, toma posse no Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima quinta-feira, dia 3. A chegada de Fux restabelece a composição plena do Supremo, com 11 integrantes. Numa Corte conhecida pela formalidade, Fux pretende inovar, por exemplo, com a apresentação de votos orais, mais rápidos do que os votos por escrito lidos na íntegra em longas e enfadonhas sessões. Cuidadoso ao tratar dos assuntos que vai julgar, Fux antecipa sua opinião sobre a dificuldade de a Justiça decidir casos como a Lei da Ficha Limpa: "Os Tribunais Superiores têm de transmitir segurança jurídica, firmar uma jurisprudência para todo mundo seguir", diz ele. "Não adianta um resultado todo desconforme."

ÉPOCA - O que é possível melhorar na Justiça brasileira?
Luiz Fux - Já superamos a barreira do custo. Os processos no Brasil eram muito caros, mas hoje temos um sistema de gratuidade que atende muito bem a população. Agora, é preciso melhorar o tempo de duração dos processos. Temos muitas ações porque, em nosso sistema, vigora o princípio de que nenhuma lesão ou ameaça a direito deve escapar de apreciação da Justiça. Em diversos países, você só recorre à Justiça depois de esgotar diversas instâncias, administrativas ou de conciliação. Aqui não. A conciliação é dentro do juízo.

ÉPOCA - Quais as consequências desse funcionamento da Justiça?
Fux - Temos 1 milhão de ações de titulares de caderneta de poupança. Isso vai produzir 1 milhão de recursos. Não há tribunal no mundo que possa julgar rápido 1 milhão de recursos. O sistema brasileiro é prenhe de recursos. Os tribunais europeus têm 3 mil recursos. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte tem 90 recursos. Nós temos 250 mil.

ÉPOCA - Há outros problemas?
Fux - Sim, os processos são muito formais e contemplam muitas etapas. Não acaba logo porque você ouve o autor, ouve o réu, ouve o autor de novo, mais uma vez o réu, marca audiência, junta documento. Junta tudo isso com recursos demais e grande número de ações e cria-se um quadro que conspira a favor da demora do processo.

ÉPOCA - A Constituição é responsável por esse quadro?
Fux - Não, o problema é infraconstitucional. Estamos consertando isso no novo Código do Processo Civil (projeto aprovado no Senado e, agora, em análise na Câmara) , com uma mentalidade diferente. Vamos eliminar esse contencioso de 1 milhão de ações com a criação de um instrumento que vai permitir a escolha de um caso líder, que vai servir de referência para todos os outros e tramitará por todas as instâncias até o Supremo Tribunal Federal num prazo de um ano e meio. Obtida a solução no Supremo, ela se aplicará a todos esses milhares de ações que tramitam no Judiciário brasileiro. Não caberão recursos.

ÉPOCA - O que o senhor acha da figura do foro privilegiado para governantes e parlamentares?
Fux - Sob um ângulo institucional, é mais razoável que um senador da República, um deputado federal, um presidente da República respondam perante a Corte Suprema. É adequado porque deriva da harmonia entre os poderes. Se analisarmos sob o ângulo das oportunidades de defesa, a prerrogativa de foro é de certo modo prejudicial a esses homens públicos. O recurso dá a possibilidade de reapurar e de verificar se houve erro. Enquanto todo cidadão comum se submete a várias esferas de jurisdição, eles não têm essa chance. Não podemos imaginar que, por maior que seja o cargo ocupado, você não possa eventualmente cometer um erro.

ÉPOCA - Mas isso não sobrecarrega ainda mais o Supremo?
Fux - A premissa na qual devemos nos basear é que estamos tratando de homens públicos. Numa República, um homem público zela pela coisa pública. Então, a premissa é que o Supremo Tribunal Federal seja excepcionalmente instado a julgar políticos. É bem excepcional mesmo. Os tribunais europeus têm 3 mil recursos. A Suprema Corte dos EUA tem 90. Nós temos 250 mil

ÉPOCA - O Supremo está desfalcado desde agosto do ano passado. Que falta faz o 11º integrante?
Fux - Ele faz falta naquelas questões em que não há consenso, que são decididas por uma maioria que não tem aquela representatividade que o próprio Supremo gostaria.

ÉPOCA - O senhor se refere aos casos da Lei da Ficha Limpa e da extradição do italiano Cesare Battisti?
Fux - Há uns 50 casos de repercussão geral, que interessam ao Brasil inteiro, que merecem que o STF tenha composição completa, ainda que os 11 julguem no mesmo sentido. No caso Battisti, foi julgada a extradição e foram analisados os requisitos constitucionais (não é brasileiro nato, não é brasileiro naturalizado, não é crime político). Agora, é preciso saber se essa verificação dos requisitos constitucionais é suficiente para efetivar a extradição. Ou quem efetiva a extradição é o chefe do Executivo? O Supremo vai dizer, agora, se foi afrontado em sua decisão de autorizar a extradição ou se o presidente do país poderia decidir. Essa é uma matéria novíssima para mim.

ÉPOCA - O senhor já está se preparando?
Fux - Sim. De preferência, vou entrar colocando processo em pauta. Eu já estive no Supremo, conversei com todos, pedi para que me mandem tudo o que estiver lá pendente.

ÉPOCA - Como vai agir no plenário?
Fux - No plenário, vou ver o que tem. Se tiver um caso desses, o Battisti, por exemplo, na semana seguinte a minha posse, estarei preparado para julgar. Não tem problema ser o primeiro voto. Assim, já acostuma. No Supremo, o mais novo traz novos valores. Não tenho direito a sentir frio na barriga. Faço isso há 30 anos. Se não souber fazer isso, o que estou fazendo aqui na magistratura?

ÉPOCA - O senhor mencionou 50 casos importantes. Pode citar exemplos?
Fux - Sim. Tem a obrigatoriedade no fornecimento de remédios, a base de cálculo do ICMS e da Cofins. Tem também cotas raciais, união homoafetiva, feto anencefálico e a "desaposentação" (quando alguém que já se aposentou e começa a trabalhar novamente quer receber a diferença dos proventos).

ÉPOCA - E o senhor já tem buscado informações sobre esses casos? Como estão os preparativos?
Fux - Gosto de fazer um manual (de procedimentos) para o gabinete. Todos têm de conhecer bem o regimento interno da Casa e as jurisprudências.

ÉPOCA - O senhor gosta da transmissão ao vivo dos julgamentos?
Fux - A coisa está posta. Não tem de gostar ou não gostar. Tem um lado bom: a transparência. A população gosta da TV Justiça. Muitos leigos veem.

ÉPOCA - No julgamento da Lei da Ficha Limpa, não houve demora da Justiça em apreciar o assunto, que contribuiu para a instabilidade jurídica durante as eleições?
Fux - Não tenho como responder, porque não tenho uma ideia de quando isso foi suscitado na Justiça. Foi suscitado no momento oportuno no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) . Mas, para sair do TSE para o Supremo, não foi tão oportuno assim. O Supremo só foi provocado na boca da eleição. O Supremo foi desafiado para as grandes questões, como os direitos dos homossexuais

ÉPOCA - Foi um erro da Justiça?
Fux - Sim, houve erro da Justiça. Às vezes, há vícios no processo, como o fato de o sujeito não ter sido ouvido. Isso é um vício que escapa à razoabilidade. A jurisprudência do STF diz que só se pode punir por improbidade administrativa quando há intenção de fraudar a lei.

ÉPOCA - Sua indicação para o STF foi vista como um possível sopro de modernização no Tribunal, por sua abordagem mais moderna de temas complicados. O que o senhor acha disso?
Fux - Entendo que os Tribunais têm de ter todos os sopros. O Vargas Llosa diz assim: existem soluções que são de direita e existem soluções que são de esquerda. No Direito, é a mesma coisa. Existem decisões que têm de ser legalistas, têm de obedecer à letra fria da lei. E outras que têm de ser de acordo com a época. Por exemplo, um grande valor hoje é a dignidade humana, que passa por vários conceitos, como autodeterminação, autossuficiência, saúde, educação, segurança, valorização do trabalho humano, a livre-iniciativa, a concorrência leal.

ÉPOCA - O senhor acha que a Justiça está dando uma resposta na devida medida e rapidez em relação a temas como união civil de pessoas do mesmo sexo?
Fux - Sem nenhuma crítica a qualquer outra composição, hoje o Supremo está sendo desafiado para as grandes questões, como os direitos civis dos homossexuais. Ninguém pode ser tratado desigualmente em razão de sua crença, de sua origem, de seu sexo. Os homossexuais têm todos os deveres e querem também seus direitos. Discriminar uma pessoa só pela opção sexual que ela fez? São grandes questões, e a composição do Supremo é magnífica para tomar decisões sobre elas.

ÉPOCA - Por quê?
Fux - O Supremo hoje tem vários vetores. Tem os ministros clássicos, como Marco Aurélio e Celso de Mello. Tem a ministra Cármen Lúcia com sua visão constitucional bem ampla. O ministro Joaquim Barbosa tem uma formação multidisciplinar. Posso falar também da sensibilidade do ministro Ayres Britto e da experiência e da sensibilidade da ministra Ellen Gracie. O ministro Ricardo Lewandowiski tem grande experiência em Direito Internacional. O ministro Gilmar é um grande constitucionalista. Finalmente, o ministro Dias Tóffoli, apesar de jovem, é um homem com uma visão de Estado magnífica.

ÉPOCA - O senhor é o primeiro judeu no Supremo. Qual é a importância desse fato?
Fux - Para a comunidade judaica, tem uma importância grande, porque é uma comunidade pequena. Para mim, é o mínimo que posso fazer por meu país. O Brasil é um país pluriétnico, um país plural que recebeu meu pai (Mendel Wolf Fux nasceu na Romênia) , um exilado de guerra, meu avô e minha avó. O país deu condições de a gente formar família. É o berço dos meus filhos. Eu digo o seguinte: o que é bom para o Brasil é bom para mim.

ÉPOCA - Sua posição favorável às cotas raciais decorre dessa sua compreensão sobre o Brasil ser um país pluriétnico?
Fux - Não posso falar (o sistema de cotas está sendo julgado pelo STF) , mas já fiz várias palestras sobre isso. Não vou negar que já disse ser favorável às cotas, mas vamos ver como está a ótica do Supremo, porque os Tribunais Superiores têm de transmitir segurança jurídica. Não adianta um resultado todo desconforme.

ÉPOCA - Como no caso da Ficha Limpa...
Fux - É importante transmitir segurança jurídica, firmar uma jurisprudência para todo mundo seguir. Isso é importante, porque torna (a realidade) previsível. Todo ser humano precisa de previsibilidade para organizar sua vida.

Publicada em 27/02/2011 pela Revista Época.
Autores: Ruy Baron/Valor/Folhapress, Eumano Silva e Marcelo Rocha
 
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domingo, 27 de fevereiro de 2011

Juízes, idade mínima e reflexos nas decisões

Coluna Vladimir - Spacca
A idade mínima para ser juiz e os reflexos no comportamento e nas decisões é tema tratado sem maior profundidade.
As Constituições de 1824 e de 1891 não fixaram idade mínima para ser juiz. Todavia, o Decreto 848, de 1890, que organizou a Justiça Federal, exigia no artigo 14 formação em Direito e quatro anos de prática. A Constituição de 1934 fixou, no artigo 80, em 30 anos a idade para ser juiz federal. As Cartas Magnas de 1937, 1946, 1967 e 1988 foram omissas. Mas a partir da EC 45/2004 o artigo 93, parágrafo 1º da CF, passou a exigir três anos de atividade jurídica.
Não é comum que Constituições estabeleçam tal tipo de detalhe. Reservam-se para os princípios e deixam que a lei ordinária fixe os parâmetros. Por isso, exemplificando, as Cartas da Argentina (1994), Colômbia (2006), Costa Rica (1949) nada dispõem a respeito. A do Uruguai (1997) estabelece no artigo 245, 1º, que 28 anos de idade será o mínimo para quem ingressa na carreira judicial.
A retrospectiva histórica é necessária. Afinal, o mundo e a sociedade se transformam permanentemente. Costumes, trajes, clima, cidades, economia, política, tudo muda constantemente. Envolvidos na luta diária pela vida, nem sempre nos damos conta.
Pensando nos jovens estudantes de Direito, darei três exemplos da total transformação, tomando por base o ano em que me formei (1968): o estagiário trabalhava de terno e gravata, concursos para promotor de Justiça tinham em torno de 400 a 800 candidatos e muitas cidades tinham um ou dois advogados, algumas nenhum.
No campo dos costumes o câmbio foi maior. Para comprar uma camisinha, salientava-se o polegar da mão direita, em um código masculino que contava com a cumplicidade do funcionário da farmácia. Hoje, a TV prepara as pessoas para o carnaval com uma música que diz “Sem camisinha não dá”,
Pois bem, se o mundo é outro como deverão ser os juízes? Os mesmos da Velha República, sérios, de terno escuro, bigodes zelosamente cuidados e esquivos no trato para evitar qualquer comprometimento? Não, lógico que não.
Atualmente, os juízes e as juízas — elas já vão se tornando maioria — são pessoas de seu tempo. Sem prejuízo de dedicar-se às funções, nas horas vagas são jovens como outros quaisquer. Malham em academia, surfam, vão ao cinema (onde muitos não abrem mão da pipoca). Nada de mais nisto tudo.
Nesta fascinante mudança do mundo, da máquina de escrever ao processo eletrônico, a vida, a saúde e a maturidade das pessoas também mudaram.
No passado, a infância ia até os 12 anos, quando o menino trocava calças curtas pelas compridas, em um silencioso ritual de passagem. A partir daí, dele exigia-se mais seriedade. Muitos iam trabalhar em cartórios ou escritórios de advocacia. A adolescência chegava ao fim quando se servia o Exército. Com 20 anos ou pouco mais, casavam. As meninas, ao tornarem-se moças, aguardavam o casamento, com o enxoval já pronto e guardado com cuidado. Era muito raro trabalharem, exceto nas classes sociais mais necessitadas.
A velhice chegava aos 50. Homens, com roupas escuras. Mulheres, com vestidos de fundo negro e alguns traços de branco, coque no cabelo e óculos de aro arredondado. E deviam ser sérios. “Muito riso, pouco siso” dizia-se.
A mudança foi lenta, mas radical. Hoje, não é novidade alguma que a adolescência vai até mais tarde. Bem mais tarde. Alguns, aos 35 anos, insistem nas baladas, arrumar um emprego em Barcelona ou fazer mais uma faculdade. Evitam, assustados, a vida adulta. É raro uma família que não tenha personagens, de ambos os sexos, neste figurino.
Para Marina Paula Goulart de Mendonça, mestre em psicologia, “o período de moratória psicossocial, que tradicionalmente caracterizava a adolescência prolonga-se, justificando, em certa medida, o surgimento de um novo período desenvolvimental, com características particulares – a adultez emergente. Segundo Arnett, o adiamento dos papeis de adulto liberta os jovens de uma série de responsabilidades que, junto com um menor controlo parental, fazem com que esta seja uma das etapas mais voláteis do desenvolvimento humano.”[i]
É a chamada Geração Y que “desenvolveu-se numa época de grandes avanços tecnológicos e prosperidade econômica. Os pais, não querendo repetir o abandono das gerações anteriores, encheram-nos de presentes, atenções e atividades, fomentando a autoestima de seus filhos. Eles cresceram vivendo em ação, estimulados por atividades, fazendo tarefas múltiplas. Acostumados a conseguirem o que querem, não se sujeitam às tarefas subalternas de início de carreira e lutam por salários ambiciosos desde cedo.”[ii]
No entanto, a entrada na magistratura continua quase a mesma de 100 anos atrás, ligeiramente alterada pela exigência de três anos de atividade jurídica. Ligeiramente, sim, porque os três anos, para alguém que se forma com 22 ou 23, é pouco, quase nada. Nos três anos pós-formatura, o candidato se dedica aos estudos nos enormes programas de concurso.
Experientes advogados não se candidatam. Não têm tempo de estudar, envolvidos com a atividade profissional e a família. Portanto, salvo honrosas exceções, os concursos da magistratura passaram a ser para jovens de classe média ou alta, que podem aguardar a passagem do tempo estudando.
A afirmativa sempre suscita a lembrança de alguém que entrou jovem e é exemplar. Concordo e poderia citar alguns. Mas normas não existem para exceções.
O que se nota hoje é que muitos jovens, pela pouca maturidade, não compreendem exatamente o alcance político e social de suas funções, conhecem pouco da vida, muitos não sabem o que é um ônibus, poucos sabem as necessidades dos pobres e não raramente têm dificuldades no relacionamento, criando atritos inúteis e sofrimento.
Não é razoável alguém, com pouca ou nenhuma vivência, decidir complexas questões de família, liberdade de presos perigosos, licitações vultosas ou complexas questões ambientais envolvendo economia e meio ambiente.
Não basta cultura jurídica, já provada com a aprovação. Nem fundamentar a decisão na Constituição de 1988, que tudo promete e não dá meios para cumprimento. É necessário mais. Maturidade, conhecimento da vida, controle das emoções. Afinal, o juiz é quem decide, é quem dá a palavra final. A responsabilidade é maior.
Na minha visão, 30 anos de idade no dia da abertura do concurso para ingresso na magistratura seria a solução. Nem mais, nem menos. Idade adequada ao mundo atual e ao prolongamento da adolescência. Sem espaço para interpretações, como está ocorrendo com os três anos de atividade jurídica, que estão alimentando recursos, ações judiciais e problemas insolúveis (v.g., lista de antiguidade de quem entrou depois, por decisão judicial).
Esta é a minha opinião. Sei que ela desagrada muita gente. Mas deixo claro, nada tenho contra os jovens ou contra os cursos preparatórios. Só estou pensando no Brasil.

[i] Análise Diferencial dos Marcadores Identitários em Jovens Estudantes e trabalhadores, p. 148, sigarra.up.pt/fpceup/publs_web.show_publ_file?pct_gdoc_id=7052
[ii] http://pt.wikipedia.org/wiki/Gera%C3%A7%C3%A3o_Y

Fonte: Consultor Jurídico

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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A justiça vai à televisão

É sempre de manhã, em dias de semana. Por volta das onze horas. A audiência preferida é a família, tanto os jovens, que vão à escola a tarde, como as mães de família, e os milhões aposentados, que em geral moram sozinhos. Neste período surgem em inúmeros canais de televisão anúncios oferecendo de serviços de advogados. São muitos e de vários tipos.
Um senhor de cerca de cinquenta anos, cara séria e confiável. Voz pausada. De terno e gravata, à frente de uma estante cheia de livros encadernados. Mesmo sabendo que estamos numa terra onde quase ninguém mais usa terno e gravata, a não ser em Nova York e Boston, e os livros não são encadernados.
Ele olha para você com uma espécie de autoridade solidária e diz: É muito fácil fazer um plano de saúde. Difícil é receber do plano de saúde. Você precisa de um escritório de advocacia como o nosso. Somos especializados em receber de planos de saúde. Você precisa de ajuda. Você só nos paga, quando receber. Telefone agora: 0800........”.
No outro anúncio, a cena é de um automóvel batido. Nada muito dramático. Nem muito sangue. Uma sirene ao longe sugere que a polícia está chegando. Mas a voz é solene e grave: “Se você se envolveu em algum acidente que causou dano, ou sofreu dano, você precisa de um advogado. Nós temos a proteção e a experiência de que você precisa. Telefone agora para 0800.....”.
Finalmente, o terceiro anúncio é mais incisivo e mais inesperado ainda “Se alguém, algum contador, algum inspetor fiscal está lhe importunando, você certamente precisa de ajuda com sua documentação de imposto de renda. Venha nos procurar. Nós temos os melhores advogados e auditores fiscais aposentados para lhe ajudar. Telefone agora para 0800....”.
Trata-se da televisão norte-americana estimulando a judicialização do consumidor e do contribuinte. A judicialização do quotidiano faz parte dessa cultura. Mas necessariamente não precisa ser um modelo de exportação. Pode haver outras alternativas e desde que enfrentemos nossas patologias.
Pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, em seu artigo 34, é proibido fazer propaganda dos serviços advocatícios. E no entanto, esta prática está crescendo informalmente, não através dos advogados de porta de cadeia como se dizia no passado. Mas através dos advogados de porta de juizados especiais ou dos balcões de atendimento dos usuários dos serviços públicos.
Não são os advogados diretamente. São funcionários contratados que distribuem folhetos aos consumidores contrariados com os serviços recebidos. Para marcar a presença, usam um colete de cor amarela, chamando os consumidores desorientados em suas reclamações.
O problema não é saber se o consumidor tem ou não razão. Em muitos casos tem. O problema é constatar que cresce nesta época de direitos de massa, mecanismos para-formais que estimulam demandas judiciais, que por sua vez, acabam por destruir os dois pilares dos juizados especiais: o de ser uma justiça rápida, sem sucessivos graus de jurisdição.
E de ser uma justiça para resolver conflitos de natureza privada entre os cidadãos e não necessariamente conflitos envolvendo serviços públicos.

Joaquim Falcão

Fonte: Blog do Noblat

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domingo, 20 de fevereiro de 2011

O papel dos servidores de cartório no Judiciário

Vladimir Passos de Freitas 2 - Spacca
O Poder Judiciário tem milhares de servidores no foro judicial. Outro tanto no chamado foro extrajudicial, que compreende tabelionatos e atividades afins, como Cartório de Registro Civil e de Imóveis. Na semana passada esta coluna foi dedicada aos que exercem cargos de direção na área judicial e administrativa do Poder Judiciário. Nesta semana o tema será os que atuam nos cartório ou secretarias judiciais, sem poder de mando.
A tarefa não é fácil. Os servidores do Judiciário não constituem um grupo uniforme. Ao contrário de outras instituições (v.g., Polícia Militar), eles possuem situação diversa, conforme a Justiça ou o local. Todavia, atualmente estão unidos nas reivindicações por meio de Sindicatos e até de Federações (v.g., Fenajud).[1] E assim deve ser. Reivindicações coletivas, impessoais, equilibradas e responsáveis. Isto retrata maturidade nas relações de trabalho.
O maior contingente de servidores é da Justiça Estadual. Cada estado tem o seu Código de Organização Judiciária, que estabelece os cargos, nomes, natureza e atribuições. Como os Tribunais de Justiça são os descendentes dos antigos Tribunais da Relação, regra geral, seguem o mesmo modelo. Por isso a maioria dos cargos possui a antiga denominação, como o secretário no tribunal e escreventes na primeira instância.[2]
Evidentemente, há sensíveis diferenças entre eles, muito embora todo o funcionalismo se sujeite aos princípios dos artigos 37 a 41 da Constituição. Por exemplo: em alguns estados o cargo de oficial de Justiça exige diploma de curso superior, em outros não. Mais significativo é o fato de que em muitos ainda existem cartórios particulares, ou seja, o escrivão contrata os funcionários e paga seus salários. Nos cartórios públicos o ingresso é por concurso, exceto para os cargos de confiança, que devem ser a exceção e em percentual limitado.
Na Justiça da União (Federal, Eleitoral, Militar e do Trabalho) não existem cartórios particulares. Os servidores ingressam por concurso público e são poucos os cargos em comissão. O trabalho é exercido na secretaria, mas alguns assessoram os juízes no gabinete. Usa-se denominação diferente, como por exemplo de analista judiciário, para cargo que exige diploma superior.
Os vencimentos da Justiça da União costumam ser mais elevados do que na Justiça dos estados. O site da Justiça Federal do Paraná fornece a média de vencimentos dos juízes federais e dos servidores. Um técnico judiciário (cargo de nível médio) recebe em média R$ 8.149,03.[3]
Ainda que muito diferentes as situações dos servidores do Judiciário, uns recebendo bem e trabalhando em locais bem estruturados e outros atuando em comarcas distantes ou sem recursos, é possível traçar algumas linhas comuns de procedimento que se aproximem do ideal.
A primeira delas é que o servidor deve ser reconhecido e tratado como uma peça essencial ao sucesso da unidade judiciária. Com efeito, de nada adiantará um juiz brilhante, proferindo as mais brilhantes decisões, se na secretaria não houver gente qualificada e disposta a dar execução ao que foi deliberado.
A motivação de um servidor passa por dois fatores: remuneração adequada e reconhecimento. Os vencimentos devem ser dignos, correspondentes à importância do cargo. E o reconhecimento deve ser sempre externado diretamente por quem dele está próximo (diretor ou juiz), ou indiretamente pelo tribunal, através de providências administrativas (v.g., cursos de capacitação).
O servidor deve sonhar, mas nunca transformar uma decepção (v.g. o desejo de ocupar função gratificada) em fonte de ódio e de reclamações permanentes. Se assim proceder, acabará cada vez mais longe do cargo almejado e mais longe também de seus colegas.
O inconformismo com alguma situação deve ser exteriorizado. Porém, com educação e respeito. Atualmente não é raro ver explosões de fúria retratadas em representações. O resultado é que a pretensão é vista com má vontade e raramente alcança seus objetivos. É dizer, a defesa de direitos não tem como requisito ofender a quem quer que seja. Isso só gera sofrimento a todos os envolvidos. Inclusive ao que representa.
Neste particular, é preciso ter noção da realidade. O mundo (não o Judiciário) não é local de santos. Injustiças existem, fazem parte da vida. Não se pode, à primeira decepção, reagir com violência ou entrar em depressão. O certo é analisar friamente o ocorrido, ver se algum erro foi cometido, evitar sair anunciando a todos própria desgraça e no dia seguinte recomeçar com força redobrada e equilíbrio emocional.
A criação de cargos públicos criou uma situação nova: os aprovados no concurso nem sempre são do local. Meses depois, querem retornar à origem. Isto desfalca a Vara e prejudica a população. Ao assumir, o servidor deve pesar as consequências de seu ato e não procurar resolver o problema a que deu causa através de pedido político ou ação semelhante.
Atualizar-se é sempre um desafio. O ideal é que os tribunais cuidem disto, possibilitem aos servidores acesso a cursos, presenciais ou não. Mas quem quer mais, ambiciona ascender a cargos mais elevados, dentro ou fora da carreira, não aguarda o impulso oficial. Vai por sua conta e risco atrás de cursos, seminários ou congressos. Claro que isso representa investimento e nem sempre é possível a um servidor mal remunerado. O que se está a dizer é que tente capacitar-se dentro da sua realidade econômica.
O relacionamento humano é fundamental para a própria felicidade e para a carreira. Com os colegas, cordialidade e discrição. Relações muito próximas, quando rompidas, geram ressentimento. Futricas podem gerar inimizades eternas. Reclamações diárias ocasionam afastamentos pois, afinal, todos já têm preocupações suficientes. Com o público externo, principalmente no balcão, onde há, por vezes, pessoas agressivas e ignorantes, uma resposta malcriada em nada contribuirá para melhorar as coisas. Respirar dez vezes antes de dizer “poucas e boas” pode evitar aborrecimentos.
Há servidores que não gostam do que fazem. Estão no lugar errado. É preciso ter a coragem de deixar a estabilidade do serviço público e procurar outro destino. Por outro lado, há aqueles que amam sua atividade e, em que pesem as dificuldades, procuram fazer o melhor. Mais cedo ou mais tarde serão reconhecidos.
Em suma, os servidores do Judiciário, pelo que fazem e representam, devem valorizar-se e ser valorizados.

NOTAS:

[1] http://www.fenajud.org.br/
[2] Vianna Gabriel, Organização e distribuição da Justiça no Brasil, Rio de Janeiro, Supremo Tribunal Federal, pgs. 56 e 204, 1923.
[3] http://www.jfpr.jus.br/transparencia/salario_medio.php

Fonte: Consultor Jurídico

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"Se o juiz cuida do futuro, torna o passado instável"


No próximo dia 3 de março, quando o ministro Luiz Fux tomará posse de seu assento no Supremo Tribunal Federal, o ministro José Antonio Dias Toffoli deixará de ser o mais novo ministro da Corte — na ordem de antiguidade, porque aos 43 anos de idade é ainda o mais jovem juiz do tribunal. Em pouco mais de um ano no Supremo, Toffoli conseguiu debelar a desconfiança de setores do Judiciário e da imprensa que enxergavam sua indicação como um ato simplesmente político-partidário.
A experiência de vida do jovem ministro lhe conferiu mais qualificação do que qualquer título acadêmico. Formado há 20 anos, antes de se tornar juiz militou ativamente na advocacia e exerceu importantes postos na República. Como subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil, advogado eleitoral do PT e advogado-geral da União, adquiriu a musculatura jurídica que surpreendeu positivamente a todos que atuam na Suprema Corte.
Principalmente no quesito transparência. Ao terminar seu primeiro ano completo na Corte, a equipe do ministro preparou apostila com estatísticas como produtividade, número de advogados e autoridades recebidos em audiência, quantidade de processos recebidos e o percentual de cumprimento das metas impostas pelo Conselho Nacional de Justiça.
Na cartilha, distribuída a jornalistas e advogados e publicada no site do Supremo a pedido do próprio ministro, pode-se conferir que Toffoli atendeu 430 advogados e 390 autoridades no ano passado e que tomou mais de oito mil decisões em processos. O ministro considera importante divulgar os números como uma forma de prestar contas à sociedade.
Toffoli foi criticado por setores do PT que defendiam a aplicação da Lei da Ficha Limpa nas eleições de 2010 ao decidir que a lei altera, sim, o processo eleitoral. E, por isso, deveria respeitar a carência de um ano prevista na Constituição Federal para passar a valer. Amigos que compreendem bem seu papel e caráter saíram em sua defesa: "O Toffoli agora é ministro, deixou de ser advogado do partido ou da União".
O ministro recebeu a revista Consultor Jurídico em seu gabinete no Supremo para uma entrevista, cujo objetivo era o de compor seu perfil para o Anuário da Justiça, que será lançado em março. Os principais trechos da conversa, onde Toffoli conta alguns episódios de sua carreira e revela sua visão do Direito e de mundo, o leitor poderá conferir abaixo.
Para o ministro, o tribunal tirou uma lição do impasse que se deu no mais polêmico julgamento do ano no Supremo, o da Lei da Ficha Limpa. Ele afirma que poderia haver o mesmo empate com a composição completa se um ministro se considerasse impedido para julgar a matéria: "Tal circunstância mostra a necessidade de o tribunal pensar soluções mais seguras, fixar regras mais claras para situações de empate".
Toffoli não crê que o tribunal fique com a imagem arranhada por conta dos debates acalorados cada vez mais frequentes entre os ministros. Costuma dizer que o Supremo não é um clube de amigos e que isso é bom para a transparência e equilíbrio das decisões. "Não que as pessoas não se deem bem, mas não é um clube de amigos. E é bom que não seja, porque a ideia é que a manifestação do tribunal corresponda ao somatório das visões e pré-compreensões de cada um de seus ministros. Em certa medida, as ideias vencidas contribuem para legitimar a tese vencedora", afirma.
Em matéria eleitoral, o ministro já se tornou referência e seus votos têm os olhos na realidade do país. Ao votar no julgamento que liberou as críticas de programas humorísticos em período eleitoral, sustentou que as críticas nunca estiveram vedadas. Mas revela preocupação com as eleições de 2012.
De acordo com Dias Toffoli, é necessário observar se a responsabilidade que a imprensa teve mesmo depois de as críticas estarem completamente liberadas na eleição presidencial vai se reproduzir na esfera municipal.
"Temos centenas de parlamentares que são donos de rádios e TVs. Muitos deles participam da disputa municipal, na condição de candidatos ou de apoiadores dos prefeitos em busca da reeleição. Uma coisa é a atuação no plano federal, com todos os mecanismos de controle, outra coisa é o eventual abuso restrito à pequena cidade ou na média cidade, onde há um poder maior de influência dos meios de comunicação, cujos titulares são os próprios políticos. Quem nasceu e conviveu no interior conhece bem o potencial de utilização dos serviços de radiodifusão em benefício ou em prejuízo de determinada candidatura", afirma o ministro nascido em Marília, no interior de São Paulo.
Na conversa com a ConJur, Toffoli fez uma análise sob a perspectiva histórica de algumas das principais e mais recentes decisões do STF e falou das mudanças de entendimento no Judiciário: "A jurisprudência não pode ser estática, mas também não pode ser traiçoeira. Numa caricatura da divisão dos poderes, o Executivo cuida do presente, o Legislativo do futuro e o Judiciário do passado. Judiciário que quer cuidar do futuro ou do presente acaba tornando o passado instável".
Leia a entrevista:
ConJur — O julgamento da Lei da Ficha Limpa foi, senão o mais importante, o mais polêmico do Supremo em 2010, principalmente em razão do impasse em torno da aplicação imediata da lei. O que é possível fazer para evitar isso?
Dias Toffoli — Não há dúvidas de que esse julgamento foi um momento de grande expectativa da sociedade em relação ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, principalmente porque estávamos em ano de eleições. E foi marcante pelo inusitado da situação, porque acabou se configurando um empate de cinco a cinco. Isso pode acontecer, como de fato ocorreu, diante da ausência de um ministro. Mas poderia se dar também com a composição completa, se um ministro se considerasse impedido para julgar a matéria. Tal circunstância mostra a necessidade de o tribunal pensar soluções mais seguras, fixar regras mais claras para situações de empate.
ConJur — Uma reunião prévia, informal, não poderia ter evitado essa situação?Toffoli — Existe a tradição de não se fazer reuniões prévias. Isso traz vantagens e desvantagens. A vantagem é que torna o julgamento mais transparente. Cada um leva o seu voto sem saber como votará o colega. É da tradição desta Suprema Corte. Por outro lado, isso gera situações como a que vimos: diante de um empate, a definição do modo como se decidirá a matéria é feita ao vivo, em cores, transmitida pela televisão. Esse aspecto é bom por revelar que, no Supremo, nada é combinado. A decisão é de cada um. E o colegiado fala em nome de todos.
ConJur — Não é um clube...
Toffoli — Não que as pessoas não se deem bem, mas não é um clube de amigos. E é bom que não seja, porque a ideia é que a manifestação do tribunal corresponda ao somatório das visões e pré-compreensões de cada um de seus ministros. Evidentemente, há problemas nessa forma de obtenção do que se poderia chamar de una vox do colegiado. A doutrina contemporânea discute qual o método mais democrático, tomando-se como parâmetros os modelos americano e europeu. Por agora, creio que é esse o nosso caminho, mas que é necessário aperfeiçoá-lo. Em certa medida, as ideias vencidas contribuem para legitimar a tese vencedora.
ConJur — O julgamento sobre o humor nas eleições foi um ponto alto?Toffoli — Foi também relevante porque mais uma vez se analisou o tema da liberdade de imprensa. O Supremo definiu a questão com grande maturidade, levando em conta a necessidade de se garantir um pleito isonômico, sem o abuso dos meios de comunicação, e sem impedi-los de opinar, criticar, de prestar o serviço público de informar a sociedade. Houve a liberação das críticas nas televisões e nas rádios, que são concessões e, por isso, tinham as maiores limitações legais. O importante é que a imprensa também mostrou maturidade ao não passar a agir sem critérios depois do julgamento. Não se observou, desde o julgamento, uma atuação dos meios de comunicação que tenha pesado ou influenciado no resultado das eleições. Espero que isso se reproduza nas eleições municipais.
ConJur — Mas o senhor não votou contra a liberação?
Toffoli — Votei no sentido de que a crítica sempre foi permitida pela legislação impugnada. Nunca entendi vedada pela lei eleitoral as críticas nos programas de telejornais e de rádios. Meu voto teve o objetivo de alertar sobre os efeitos da decisão nas eleições municipais. Minha preocupação é se essa responsabilidade da comunicação social, que é perceptível no âmbito da eleição presidencial, vai se reproduzir na esfera municipal, na medida em que nós temos centenas de parlamentares que são donos de rádios e TVs. Muitos deles participam da disputa municipal, na condição de candidatos ou de apoiadores dos prefeitos em busca da reeleição. Uma coisa é a atuação no plano federal, com todos os mecanismos de controle, outra coisa é o eventual abuso restrito à pequena cidade ou na média cidade, onde há um poder maior de influência dos meios de comunicação, cujos titulares são os próprios políticos. Quem nasceu e conviveu no interior conhece bem o potencial de utilização dos serviços de radiodifusão em benefício ou em prejuízo de determinada candidatura. Esse julgamento serviu para que eu expusesse uma diretriz político-constitucional que tenho pouco a pouco manifestado em alguns de meus votos, especialmente em casos mais emblemáticos: é preciso compreender as peculiaridades da federação brasileira e impedir que as assimetrias entre o poder central e as forças locais condicionem a interpretação da Constituição. É nesse mister que o Tribunal a que pertenço tem condições de contribuir para a estabilidade institucional e a preservação dos direitos fundamentais.
ConJur — O senhor destaca algum outro julgamento importante?
Toffoli — Sim. Tive a oportunidade de me convencer e mudar de posição no julgamento no qual o Supremo julgou inconstitucional a vedação de o juiz converter a pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos, no caso de condenados por tráfico de drogas. Acompanhei os colegas que entenderam que a proibição feria o princípio da individualização da pena. Com os debates, persuadi-me que não se pode aceitar a prisão sob o fundamento reducionista da lei. Dito de outro modo, o confronto entre a lei e o princípio constitucional da individualização da pena fez-me ver que seria necessário emprestar ao juiz, senhor das circunstâncias do caso concreto, uma margem de conformação maior, levando-se em consideração os direitos fundamentais do réu.
ConJur — Quando isso acontece, sempre se ouvem críticas de que a jurisprudência do Judiciário, hoje, é muito flutuante. Mas a jurisprudência não pode ser estática, certo?
Toffoli — Não pode ser estática, mas também não pode ser traiçoeira. Há um caso julgado pelo TSE que exemplifica bem a diferença. Em março de 2008, o TSE editou uma resolução sobre a possibilidade de quem já ocupou dois mandatos seguidos em uma cidade, disputar um terceiro mandato pela cidade vizinha. Pela resolução, o prefeito teria de se desincompatibilizar e poderia concorrer.
ConJur — Sair seis meses antes das eleições?
Toffoli — Exato. A resolução sinalizou para um conjunto de prefeitos, que estavam em segundo mandato, que eles poderiam ser juridicamente admitidos pela Justiça Eleitoral, desde que renunciassem ao mandato. Muitos renunciaram. Depois, houve impugnação no TSE e em novembro de 2008, em um caso concreto, o TSE decidiu que essa situação de fato configurava-se uma fraude ao princípio constitucional que veda o terceiro mandato. Ocorre, porém, que o próprio Tribunal já havia autorizado essa conduta.
ConJur — Mas o que deveria ser feito?
Toffoli — O TSE poderia decidir que o ato se caracterizaria como fraude, mas aplicar a decisão aos casos posteriores. Assim entendo, porque o prefeito abriu mão de nove meses de mandato legítimo para disputar em um município vizinho, após a sinalização do TSE. A segurança jurídica não impõe uma jurisprudência petrificada, mas a mudança não pode atingir as pessoas que agiram da forma que ela própria indicou. Minhas convicções ou minha visão de mundo não podem ser colocadas acima da segurança jurídica. É uma questão de lealdade para com o jurisdicionado. Numa caricatura da divisão dos poderes, o Executivo cuida do presente, o Legislativo do futuro e o Judiciário do passado. Judiciário que quer cuidar do futuro ou do presente acaba tornando o passado instável.
ConJur — Para o recebimento de denúncia, bastam indícios de participação e a materialidade do crime ou é necessária a descrição e individualização da conduta dos acusados?
Toffoli — A conduta tem que ser descrita e tipificada pelo Ministério Público porque o fato de o cidadão responder a uma ação penal já modifica seu status social.
ConJur — O senhor considera que a ação criminal, por si só, já é uma pena?
Toffoli — Eu vou dar-lhe um exemplo. Eu era recém-formado e um médico formado pela USP, com 55 anos de idade, qualificado técnica e intelectualmente, recebeu uma citação por conta de uma dívida não quitada. O valor era pequeno e ele havia se esquecido de pagar. Bastava quitar a dívida e acabava o litígio. Ele me procurou indignado porque o ato judicial se referia a ele como réu. Ele repetia: “Como réu? Não cometi nenhum crime e vou pagar a dívida, como ele me chama de réu? O credor não me ligou, não recebi cobrança e agora virei réu? Não sou criminoso!”. O mais difícil foi explicar-lhe que não se lhe imputava crime algum. Mas, o termo réu, naquela citação, já lhe colocava em situação difícil, ao menos em sua visão do caso. Veja, estamos falando de uma pessoa esclarecida. O exemplo mostra como, para o senso comum, o fato de alguém ser réu já lhe impõe uma mácula. É dentro desse contexto que o juiz precisa analisar o recebimento de uma denúncia. Não é à toa que a lei processual penal passou a exigir recentemente que, antes do recebimento da denúncia pelo juiz, o acusado seja intimado para se defender. Por que se passou a exigir isso? Exatamente pelo sentido de desvalor que vem acompanhado do ato de recebimento da denúncia.
ConJur — É por isso que muitas denúncias no STF são consideradas ineptas?
Toffoli — Chegam ao Supremo muitas denúncias de natureza objetiva. Por exemplo, um prefeito assina determinado convênio, há um desvio e ele é denunciado apenas por ter assinado o convênio. Se há um desvio na execução do convênio, é necessário verificar quais foram os sujeitos responsáveis por aquele desvio. O fato de alguém ser imputado apenas pela ocupação de um cargo é um exemplo típico da famigerada responsabilidade objetiva, utilizada geralmente por regimes de força. Há uma teoria do Direito Penal que é a do domínio do fato. “Ah, o cidadão tinha o domínio do fato”. O Código Penal brasileiro adotou a necessidade de individualização das condutas. Por isso, eu considero não ser a teoria do domínio do fato adequada ao sistema penal e processual penal brasileiro. Preocupa-me a ideia da responsabilidade objetiva no Direito Penal.
ConJur — Ao julgar Mandado de Injunção e Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão, cabe ao Supremo apenas declarar a mora do Poder Legislativo ou deve garantir o direito reclamado?
Toffoli — Depende do caso. É necessário fazer uma análise sob a perspectiva histórica. Logo que se promulgou a Constituição, os novos institutos foram saudados porque prestigiavam a ideia da efetividade das garantias constitucionais. O Judiciário passou a ser um ator privilegiado na concretização de garantias fundamentais e dos direitos sociais. Alguns direitos foram delegados para a legislação complementar e ordinária. Na Constituinte, quando havia um impasse, o que se fazia? Garantia-se o direito, mas deixava-se sua regulamentação para a lei. O tempo passou e a lei não veio. Chegaram, então, os mandados de injunção. No início, o Supremo Tribunal Federal agiu com muita parcimônia na concessão de eficácia ao instituto, o que considero razoável, pois não se regulamenta uma Constituição em pouco tempo. É preciso ter em conta o que Konrad Hesse chama de “possibilidades de realização do conteúdo constitucional”. Mas a jurisprudência mudou de um tempo para cá e creio que isso foi positivo para a ordem constitucional.
ConJur — O marco da mudança foi o julgamento que garantiu o direito de greve de servidores públicos?
Toffoli — Sim. Uma coisa é um direito garantido na Constituição que há cinco anos não é regulamentado. Outra é uma omissão legislativa de 20 anos. Por isso, o STF decidiu que, enquanto o Congresso não regulamentar esse direito, aplica-se aos servidores públicos a mesma regra dos trabalhadores da iniciativa privada. O posicionamento do Supremo em matéria de Mandado de Injunção e de Ação Direta por Omissão tem de ser visto sob a perspectiva histórica de tolerância com a mora do Congresso no início e de intolerância hoje. Atualmente, o Mandado de Injunção é mais efetivo.
ConJur — Por quê? Por que mudou a composição da Corte?
Toffoli — Porque o tempo passou e o Congresso continua em mora. Simples assim. Quem é que pode garantir que a composição que julgou os primeiros mandados, se ainda estivesse na Corte, não decidiria como os atuais ministros? Ela tolerou lá atrás, quando a Constituição era recente. Agora, com mais de 20 anos sob a nova Constituição, talvez fosse até mais radical do que nós somos. Os mandados de injunção, portanto, nos casos concretos, têm que ser analisados dessa forma. O Congresso teve tempo de regulamentar? O tema está em discussão? O direito vem da Constituição originária ou foi uma emenda recente? Penso que é razoável ter uma perspectiva de tolerância.
ConJur — Quando o parlamentar que responde a processo no Supremo renuncia ao mandato, seu processo deve continuar no STF ou volta para as instâncias ordinárias?
Toffoli — Já votei no sentido de que continua a correr no Supremo. Em regra, o parlamentar renuncia às vésperas do julgamento e, se decidirmos que a instância é outra, muitas vezes há o risco de prescrição. Por isso sempre defendi o foro de prerrogativa por função. Muitos que consideravam esse foro como uma forma de privilégio ou de imunidade, hoje percebem que não se trata exatamente disso.
ConJur — Por que o Supremo passou a julgar e, em alguns casos, condenar parlamentares apenas recentemente?
Toffoli — Porque antes a Constituição impedia. Era necessário ter a autorização do Congresso. A Constituição mudou. Hoje a autorização não é necessária.
ConJur — Por que o senhor defende o foro por prerrogativa de função?
Toffoli — Porque o membro de um Poder será julgado pela Corte mais autônoma e independente do país. Que influência tem um parlamentar sobre o Supremo em relação a um processo de seu interesse? Nenhum. Como, aliás, de rigor, ninguém tem.
ConJur — Além da repercussão geral e da súmula vinculante, há algum outro instrumento eficaz para garantir a imperatividade das decisões do Supremo?
Toffoli — As decisões do Supremo já são bastante respeitadas. Mesmo antes de Súmula Vinculante, ou de qualquer instrumento, o Judiciário já aplicava os precedentes. Até porque os juízes, salvo exceções que confirmam a regra, têm bom senso. O efeito positivo da Súmula Vinculante, que é pouco destacado, é que ela vincula a Administração Pública, o Estado brasileiro. Então, se ele descumpre determinada decisão sumulada, o cidadão tem um remédio imediato perante o Supremo Tribunal Federal, que é a Reclamação.
ConJur — Mas esse número de reclamações não será restrito?
Toffoli — Sim, mas será restrito exatamente graças à Súmula Vinculante. A Administração Pública, por natureza, muitas vezes faz a análise do custo-benefício, principalmente na área econômica. Em alguns momentos da vida nacional, editava-se uma norma tributária de duvidosa constitucionalidade, a despeito da ciência desse fato. Se caísse na Justiça, metade da população iria conseguir reverter e a outra metade seria lucro para o Estado. Resultado: esse expediente valeu a pena em uma situação de crise. A Súmula Vinculante impede isso. A História mostra que a lógica da área tributária e econômica de qualquer governo tem diversos momentos de choque com a da área jurídica. A área econômica é pragmática, ela faz o cálculo. Mas quando se aumenta o leque de acesso ao controle direto pelo Supremo, introduz-se maior segurança jurídica no país, maior celeridade na invalidação das normas inconstitucionais. Cria-se a necessidade de o Executivo e de o Congresso criarem leis observando com mais acuidade sua constitucionalidade.
ConJur — Já houve reclamações de que, ao ter que justificar os motivos da recusa da repercussão geral, o ministro do Supremo acaba quase enfrentando o mérito do processo. Na Suprema Corte americana, os juízes escolhem os casos sem fundamentar a recusa. Esse modelo se aplica no Brasil?
Toffoli — Não. Decisão judicial tem de ser fundamentada e não cabe ao Supremo deixar de fazer. Essa é uma bela herança da tradição jurídica portuguesa, que muitos criticam, mas que deixou um legado importante para a cultura jurídica nacional. Todos os meus votos e decisões são devidamente fundamentados. O mínimo que o juiz deve fazer é cumprir a determinação da própria Constituição. O juiz não é eleito, não tem de prestar contas, mas ele tem um dever a cumprir: tomar decisões transparentes. E a transparência está exatamente permitir o controle público e técnico dos motivos pelos quais se decidiu de determinada forma. Quando eu era advogado, uma das coisas que mais me chateava era me deparar com um despacho sem os motivos. Geralmente, vinha assim: “Ausente o fumus boni iuris e o periculum in mora. Indefiro a liminar.” Hoje, como juiz, quando aprecio uma liminar eu explico porque entendo que esses requisitos estão ausentes ou não.
ConJur — O Judiciário pode determinar que o Executivo implemente políticas públicas?
Toffoli — Essa questão foi enfrentada recentemente em um julgamento que versava sobre o direito à saúde. Decidimos que o acesso a medicamentos é um direito do cidadão e o Estado tem que fornecê-los. Mas é uma discussão delicada. O Judiciário tem de ser cuidadoso. Contudo, existem políticas públicas que a Constituição exige do Estado brasileiro e, muitas vezes, dá-se a injustificável mora estatal. O cidadão que se vê preterido pela ausência de um direito não tem outro recurso senão vir ao Judiciário. Imaginemos situações-limite. Se o Estado não construísse escolas ou implementasse políticas para a universalização do ensino básico, o Judiciário não poderia agir quando procurado pelos pais, cidadãos brasileiros, cujos filhos não têm acesso à educação? Não seria razoável. O que o Judiciário não pode é dizer de que forma a política pública deve ser efetivada na área da saúde ou na área da educação, por exemplo. Não pode influir no desenho da política pública. Mas pode decidir que o Estado é obrigado a dar ao cidadão acesso a essas garantias constitucionais. Talvez mais relevante do que essa discussão seria o debate em torno do uso que se tem feito dos termos de ajustamento de conduta, os TACs. A sociedade civil precisa colocar esse problema na ordem do dia. Esses TACs, muitas vezes, são impostos pelo Ministério Público aos quase seis mil municípios brasileiros, tendo por efeito prático a substituição dos agentes do Parquet ao mandatário eleito pelo povo. Dá-se a substituição da vontade democrática do eleitor pela visão de mundo dos membros do MP, que, por meio dos TACs, dizem como, quando e de que forma as políticas públicas devem ser executadas. Esse protagonismo que o MP, nas instâncias municipais, vem exercendo deve-se também à ausência de obrigatoriedade constitucional de uma advocacia pública de Estado nos municípios.
ConJur — A penhora de bens pelo fisco sem qualquer manifestação da autoridade judiciária é uma constrição legítima à luz da Constituição?
Toffoli — Eu penso que é possível a Administração Pública fazer, por exemplo, uma pesquisa direta em cartórios e determinar a constrição. Mas é evidente que isso não pressupõe a ausência do devido processo legal. É necessário que haja um devido processo legal administrativo, no qual o contribuinte tenha amplo direito de defesa. Se não convencer a Administração, ele sempre poderá buscar a última palavra no Poder Judiciário. Hoje, todos os casos de constrição, necessariamente, têm de ser determinados pela Justiça. Com esse quadro, muitas vezes um banco tem capacidade maior de constrição do que o Fisco. Não se pode pressupor que a Administração Pública vai abusar sempre. Nem é razoável imaginar que ela vai abusar a maioria das vezes.
ConJur — Mas pode abusar muitas vezes, não?
Toffoli — É obvio que não somos ingênuos a ponto de achar que Administração Pública não é capaz de abuso. O Estado erra. O Estado, às vezes, persegue. No caso de um gestor mal intencionado, pode haver perseguição e aí cabe ao lesado se socorrer no Judiciário. Mas é necessário dar mais força à solução dos litígios na esfera administrativa. O Supremo enfrentará em breve a questão da prévia análise administrativa dos requerimentos previdenciários. O cidadão que pleiteia algum benefício pode acionar a Justiça sem, antes, ter litigado com a Administração? Lembre-se que falamos de milhões de ações. Por que o Estado mantém uma estrutura grande como a da Previdência, os postos do INSS, se o cidadão vem imediatamente para o Judiciário discutir seu direito? Nessa discussão entra a lógica perversa do mercado de trabalho da advocacia.
ConJur — Que lógica perversa?
Toffoli — A ideia de que advogado só tem direito de receber honorários se ganhar o processo na Justiça. Quando ele ganha na esfera administrativa, a leitura que se faz é de que a parte já tinha o direito. Então, não precisa pagar honorários. É uma visão muito equivocada. Porque o advogado que ganha administrativamente também tem direito de receber por seu trabalho. Há um mercado de trabalho ainda muito pouco explorado na esfera administrativa no Brasil. E, na verdade, a solução mais rápida justifica uma melhor remuneração do que a mais demorada.

Fonte: Consultor Jurídico

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