terça-feira, 29 de julho de 2008

Judiciário não será o mesmo após Operação Satiagraha

Novos tempos
Judiciário não será o mesmo após Operação Satiagraha
A Satiagraha revela novas aproximações no Judiciário. A afirmação é da cientista política, Maria Tereza Sadek, diante dos desdobramentos da operação deflagrada no último dia 8 de julho, pela Polícia Federal. Segundo ela, o apoio do Ministério Público à Pólicia Federal é algo inédito e absolutamente excepcional.
Em entrevista às jornalistas Flávia Tavares e Laura Greenhalgh, do suplemento Aliás, do jornal O Estado de S.Paulo, Sadek fala da atuação das instituições envolvidas na operação que prendera o banqueiro Daniel Dantas, o ex-prefeito da capital paulista Celso Pitta e o investidor Naji Nahas.
Ela falou também sobre o mal-estar entre a primeira instância e o Supremo Tribunal Federal e explicou o porquê da sensação de que a “Justiça funciona para os ricos, não para os pobres”. A pesquisadora elogiou a atuação da PF (com restrições ao delegado Prótogenes), analisou o comportamento do juiz, do promotor, do delegado e do presidente do Supremo, Gilmar Mendes.
Na entrevista, sobraram ainda críticas ao ministro da Justiça, Tarso Genro, a quem classificou de inábil. “Ele se tornou uma das partes do conflito. Primeiro, provocou o ministro Gilmar Mendes, que revidou. Como representante do Executivo, ele não pode confrontar a independência do Judiciário nem de seus membros”, disse.
Maria Tereza Sadek também é professora titular da USP e coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej).
Leia a entrevista concedida ao suplemento Aliás
Há duas semanas falou-se em insegurança jurídica no país. Esta semana até o presidente da República se manifestou sobre a atuação de um delegado da PF. Entramos na instabilidade institucional?
Maria Tereza Sadek — O que vejo é a disputa por espaço, confrontos vários num processo de afirmação das instituições. Observe o choque entre a Justiça de primeira instância e o Supremo. Ou dentro da PF, onde há dois grupos claramente divididos. Há ainda os interesses dos advogados, outro lado dessa disputa. De repente, diferentes interesses institucionais vieram à tona ao mesmo tempo, no mesmo caso.
Eram conflitos latentes?
Maria Sadek — Desde 1988, quando as instituições estavam se organizando. Caberia perguntar: quem está ganhando espaço? Não privilegio a análise estritamente jurídica, como toda essa discussão que os advogados travam sobre se o ministro Gilmar Mendes, do STF, deveria ou não ter concedido habeas corpus a Daniel Dantas. Prefiro a discussão institucional. O que está acontecendo com a Justiça de primeira instância? O que está acontecendo com o Supremo?
E o que está acontecendo?
Maria Sadek — Atravessamos um período no qual o Supremo vem ganhando espaço. E a atitude do ministro Gilmar, nos últimos dias, fortalece essa tendência de concentrar poder na cúpula do Judiciário. O que fatalmente leva ao enfraquecimento da Justiça de primeira instância.
O juiz Fausto De Sanctis disse o seguinte: se alguém esconde provas, dificulta o acesso a elas ou até as adultera, há razão para mandar prender. E lembrou: suas decisões podem ser reformadas em instância superior. Ele está certo?
Maria Sadek — O Judiciário sempre funcionou segundo o princípio de que o juiz tem liberdade e autonomia para julgar. Sua subordinação se dá apenas no plano funcional. Então, as decisões de primeira instância podem ser reformadas em instâncias superiores. É normal. O que não cabe é julgar o juiz, porque ele decide conforme a sua interpretação da lei e a sua consciência. O que originou essa grita toda foi a informação de que a decisão do juiz De Sanctis poderia parar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Como assim?
Maria Sadek — O conselho é órgão de controle. É disciplinar. A reação vem daí: a decisão do juiz é passível de reforma em instâncias superiores, como eu disse, mas não de punição disciplinar.
O caso iria parar no conselho?
Maria Sadek — Pois é, não ficou claro. Quando o ministro Gilmar Mendes disse que iria encaminhar para o conselho, houve uma revolta como eu jamais vi na história da magistratura brasileira, desde os tempos da Colônia. Daí o ministro voltou atrás, disse que encaminharia o caso apenas para as estatísticas.
Que casos vão para o CNJ?
Maria Sadek — Vão casos como o daquele juiz que “senta” sobre um processo sem decidir nada. Ou que favorece uma das partes. É esse tipo de demanda. O conselho jamais apreciará uma sentença. Aliás, desde os anos 90, quando se discutiu o controle externo do Judiciário, havia um ponto pacífico: sentença não está em julgamento.
O ministro Gilmar recuou?
Maria Sadek — Todo mundo recuou politicamente esta semana. E eu reforço outro aspecto: nesse caso há muita coisa de que não temos ciência. Detalhes que não conhecemos, como o porquê do afastamento do delegado do caso. Por isso, não quero saber se o ministro Tarso Genro agiu assim ou assado porque disputa espaço com a Dilma ou se é inimigo do José Dirceu. Não quero patinar na política pequena. Ganharemos se extrairmos desse caso conseqüências de médio e longo prazo.
Tarso Genro disse que o juiz estaria demonstrando certa instabilidade na condução do caso. Ele pode fazer essa afirmação?
Maria Sadek — Não pode. Talvez tenha ido além daquilo que um ministro da Justiça pode fazer. Aliás, Tarso Genro foi inábil e se tornou uma das partes do conflito. Primeiro, provocou o ministro Gilmar Mendes, que revidou. Representante do Executivo, ele não pode confrontar a independência do Judiciário nem de seus membros.
Mas o chefe do Executivo convocou o chefe do Judiciário para uma conversa.
Maria Sadek — Pois é, a confusão se espalhou. Envolveu não só diferentes instituições, como grupos dentro destas instituições. O presidente Lula foi obrigado a se manifestar, porque a percepção pública foi de um conflito muito forte. A potencialidade de explosão desse episódio é fantástica.
O que o caso tem de tão poderoso?
Maria Sadek — Ele mexe com uma pessoa com vínculos em todas as instituições. O empresário Daniel Dantas demonstrou ter esse trânsito amplo e isso fez com que a confusão aflorasse, mexeu com interesses de grupos. Nas minhas pesquisas, sempre me perguntava por que não passava a reforma do Judiciário, sendo esta uma idéia que todos os setores viam como necessária. Cheguei à conclusão de que não saía por não haver coalizões permanentes sobre os pontos discutidos. Vou dar um exemplo: súmula vinculante. Quem era a favor? As instâncias superiores da magistratura e o governo. Quem era contra? As instâncias inferiores da magistratura e a advocacia. Daí, fui ver quem era a favor do controle externo do Judiciário: as instâncias superiores da magistratura e a advocacia. Formou-se outra coalizão, com partes divergentes em outro tópico! A reforma só saiu graças à habilidade do então ministro Márcio Thomaz Bastos. Ele fatiou a reforma. Delimitou um campo onde havia relativo consenso.
Cabem tantas concepções de Justiça assim?
Maria Sadek — Há duas concepções opostas. Uma delas, mais tradicional, volta-se para os direitos e interesses individuais. Outra, para os direitos coletivos e interesses sociais. O conflito entre elas aparece a toda hora. Um exemplo é essa discussão sobre a “ficha suja dos candidatos”. É a briga entre os que acham que os direitos individuais têm de ser preservados acima de tudo e os que defendem que o eleitor saiba tudo sobre os candidatos. E a nossa Constituição? Ela defende tudo o que se possa imaginar. Do ponto de vista da defesa formal dos direitos, não há constituição no mundo tão generosa quanto a brasileira.
O senador Heráclito Fortes (DEM-PI) anunciou que, por ter sido citado na investigação na Satiagraha, não só recorrerá ao Supremo, como poderá levar o caso para lá.
Maria Sadek — Ele pode, tem foro privilegiado.
E tudo vira matéria constitucional?
Maria Sadek — Quando você tem tantos direitos constitucionalizados, qualquer coisa pode ser questionada judicialmente. Vale para direitos individuais ou coletivos, vale para todas as instâncias, a questão é saber onde eu entro nessa história. Como uma cidadã comum, entro no primeiro grau. Heráclito Fortes, senador, vai bater no Supremo. E tudo pode ser questionado: uma determinada reforma é aprovada no Congresso por maioria. Encerrada a questão? Não. Porque a minoria pode continuar discutindo via recurso na Justiça. É como se o Judiciário fosse uma arena a mais para o debate político. Costumo dizer: nós, no Brasil, temos acesso demais na Justiça. E acesso de menos.
Explique a diferença, por favor.
Maria Sadek — Para entrar na Justiça, os custos são baixíssimos e os benefícios, altíssimos. Você pode retardar, protelar, reformar uma decisão, e o que terá perdido com isso? Nada. E ainda ganhou tempo. De outro lado, você tem milhões de pessoas excluídas de direitos. Primeiro, porque sequer os conhecem. Segundo, porque têm descrença no juízo. Eis o acesso dificultado. É o contrário da situação em que, por qualquer motivo, o sujeito diz “vou para a Justiça”. Não se tem idéia do que existe de litigância de má-fé neste país. E, pior, não há punição adequada para a litigância de má-fé.
Vem daí a sensação de que a Justiça funciona para os ricos, não para os pobres?
Maria Sadek — Exatamente. Gosto de ler as cartas de leitores nos jornais. Nesses últimos dias, elas estão fortíssimas. Vi mais de um leitor comentando o seguinte: “Cacciola confia na Justiça? Tem que confiar mesmo, porque para ele funciona.”
É uma percepção equivocada?
Maria Sadek — Eu não diria isso. Mas nesse caos dos últimos dias, quem mais saiu prejudicado? A imagem da Justiça. Mais do que a imagem dos implicados, da PF, de tudo. A Justiça ficou mal e a população julga sem filtro. O povo não quer saber se existem várias instâncias. Fica a percepção de que a polícia prende e a Justiça solta.
O crime de colarinho branco está sendo mais julgado no Brasil?
Maria Sadek — Está. Nos últimos anos, houve uma mudança de qualidade e isso se deve muito à atuação do MP e da PF. Há uma série de denúncias que redundaram em processos e julgamentos. Se esse pessoal está na prisão ou não, é outra discussão. Mas o fato de existir a denúncia, a investigação, de o MP estar voltado para esses casos e de isso ser levado ao Judiciário já tem um efeito positivo.
Que efeito é esse?
Maria Sadek — Vamos pegar um caso exemplar. Há diversas denúncias contra prefeitos e processos contra secretários municipais. O resultado é que eles não estão mais confiantes na impunidade. É óbvio que estamos muito longe do ideal. Mas evoluímos bastante. Quantas vezes você viu um banqueiro voltar extraditado na classe econômica do avião, na última fileira, perto do banheiro?
Daniel Dantas teria dito, em conversa flagrada num grampo, que a primeira instância poderia lhe apresentar dificuldades, mas, no Supremo, ele agiria com tranqüilidade. O que essa fala representa?
Maria Sadek — É arriscado fazer comentários a esse respeito, podemos cair num denuncismo infundado. Claro que é mais fácil ter contatos com um número restrito de juízes ou de ministros em instâncias superiores do que com o primeiro grau, que é pulverizado. Mas o que essa fala reflete é a idéia da impunidade. Essa elite acredita que pode fazer o que quiser e, em algum momento, conseguirá, com sua influência, alterar a situação.
A senhora concorda com a idéia de que um Estado policial estaria se instalando?
Maria Sadek — Essa percepção prova como a PF tem dificuldades de se firmar como instituição. Se, de um lado, é incontestável que ela ganhou em graus de institucionalização, por outro, há uma falta de controle de seus integrantes. Então, pode haver comportamentos radicais de alguns membros, que dêem a idéia de um Estado policial. O relatório do delegado é cheio de qualificativos, de intenções. Isso não contraria o fato de que, no todo, a PF tem agido com mais competência.
Dantas contrata advogados que fazem parte de bancas tradicionais e de grupos chegados ao Planalto, como o ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh e o compadre de Lula, Roberto Teixeira. Qual é o limite entre a advocacia e o lobby?
Maria Sadek — O lobby é uma atividade regular e legal nos EUA e em toda parte do mundo. Aqui, o lobby ficou associado ao tráfico de influência e a conotação é pejorativa. Qualquer grande empresário tem uma plêiade de advogados, com acesso a diversas esferas. O papel do advogado é a defesa, portanto, ele tem de procurar o melhor instrumento para defender seu cliente. Nisso, cabe o lobby? Cabe. E os grandes escritórios têm a vantagem das boas relações.
Isso inclui o tráfico de influência?
Maria Sadek — De um ponto de vista muito realista, inclui. Por isso, as pessoas querem como advogado um ex-ministro, por exemplo.
As associações de magistrados e de delegados já se pronunciaram em favor tanto do juiz De Sanctis quanto do delegado Protógenes. Essas manifestações podem reforçar o corporativismo?
Maria Sadek — As associações de classe estão mudando de perfil. A associação de magistrados, a AMB, vem tendo um papel decisivo em questões que não são estritamente corporativas. Ao assumir a defesa do juiz De Sanctis, há uma manifestação, não só da AMB, mas dos juízes federais, de uma visão a respeito da estrutura do Judiciário, do fortalecimento do primeiro grau. Já a associação dos delegados foi a favor do delegado Protógenes para dizer “a PF tem que ter um papel que é tal”. Isso transcende o corporativismo. Mas o que é absolutamente surpreendente é a manifestação do MP a favor do juiz e do delegado. Isso é uma originalidade na história das instituições.
O que isso significa?
Maria Sadek — Que o promotor está confirmando para a sociedade que há uma denúncia sustentável. O habitual era haver um confronto do MP com a polícia, porque uma das atribuições do MP é o controle externo da atividade policial. Obviamente, a polícia não gosta de ser controlada por outra instituição. Por isso, esse apoio é absolutamente excepcional e deve ser valorizado.
Revista Consultor Jurídico, 21 de julho de 2008

Um comentário:

ulisses disse...

pese num blog +-, só podia ser, foi eu quem fez...rsrsrs, e os artigos são bons