segunda-feira, 4 de maio de 2009

Omissão do Legislativo dá espaço à "supremocracia"

A revogação da Lei de Imprensa e o início do julgamento de ações sobre o sistema de saúde nacional, promovidos pelo STF (Supremo Tribunal Federal) na última semana, mostraram que a lentidão do Congresso em aprovar leis que regulamentem direitos fundamentais está custando ao Legislativo perda de poder.
O vácuo criado pelos legisladores vem permitindo ao STF ampliar cada vez mais sua esfera de atuação institucional. Cidadãos têm procurado na Justiça a solução de problemas ou a garantia de direitos não guarnecidos em lei -cujos projetos muitas vezes estão empacados no Congresso por décadas.
Foi o caso da Lei de Imprensa, criada em 1967 durante o regime militar. Após a Constituição de 1988, diversos projetos para modificar a lei foram propostos no Congresso, mas a decisão de revogar o texto legal só veio do STF na quinta-feira.
Nem mesmo as questões de políticas públicas na área social estão fora do alcance do tribunal. Ante as dezenas de milhares de ações judiciais sobre o direito à saúde -principalmente de acesso a medicamentos- em trâmite no país, o STF resolveu decidir coletivamente os processos relativos ao tema e para isso está realizando audiências públicas. Os julgamentos do tribunal nessa área poderão ter grande repercussão no sistema de saúde do país.
"Poder não admite vácuo", diz a professora do mestrado em direito da Universidade Estácio de Sá (RJ) e especialista em ativismo judiciário Vanice Lírio do Valle. Segundo ela, parece que o Legislativo prefere o "ônus da inércia" do que o ônus de desagradar parte do eleitorado com decisões polêmicas.
Entre os assuntos controversos que estarão nos próximos meses na pauta do STF estão a união de pessoas do mesmo sexo e o aborto de fetos anencéfalos. A expectativa no STF é que o tema da união homoafetiva seja julgado até o final do ano, em um processo em trâmite na corte. Já a questão dos anencéfalos pode ser apreciada ainda neste semestre pelos ministros do tribunal.
"Diante do comportamento do Legislativo, demorou [para o STF decidir tomar a frente em questões não abarcadas em lei]. O STF aguentou um bocado", diz Vanice do Valle.
A corte já chegou a declarar expressamente a omissão do Legislativo na elaboração de leis que estavam previstas pela Constituição Federal, como no caso do direito de greve dos servidores (veja quadro).
Nessas situações o STF comunicou oficialmente o Congresso sobre as lacunas, mas os temas continuaram sem definição no Legislativo.

Lacuna
O próprio Legislativo já se manifestou sobre o assunto. Em março, um grupo de deputados federais, ao justificar um projeto de lei sobre união de pessoas do mesmo sexo, reconheceu que "a omissão legislativa gera profunda perplexidade no tecido social, sendo esta cotidianamente resolvida por via judicial", escrevem eles.
Oscar Vilhena Vieira, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, afirma que o país convive hoje com uma "supremocracia", uma vez que nos últimos anos o STF ampliou seu poder sobre as instâncias inferiores do Judiciário, e está atuando nas lacunas deixadas pelo Legislativo.
"Com a omissão do Parlamento em tomar decisões sobre questões fundamentais e a perda da autoridade moral do Congresso, há uma expansão dos demais poderes", diz ele.
"Tradicionalmente, no Brasil, essa expansão era do Executivo. A partir dos últimos quatro ou cinco anos, o Supremo passou a ser o poder que mais expande sua autoridade."
Segundo especialistas, um dos problemas é a seletividade do STF sobre o que vai ou não ser objeto de análise. "Ou a corte entende que no vácuo do Legislativo ela tem que funcionar, ou ela não entende isso. Ela escolher "aqui eu vou ser ativista e ali eu não vou ser" é preocupante", afirma Vanice do Valle.

Efeito negativo
Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), diz que a atuação do STF pode ter efeitos negativos a longo prazo.
"Na omissão do Congresso, é melhor que o Judiciário atue para criar algum tipo de parâmetro legal. Porém, o desejável a longo prazo é que cada poder funcione adequadamente de acordo com o que se espera dele constitucionalmente", disse.
Vanice alerta para os danos à democracia. "O Legislativo é um órgão com representação democrática. Mal ou bem, é no Legislativo que se estabelece o diálogo com a sociedade."

Fonte: Folha de São Paulo 04/05/09

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