sexta-feira, 13 de março de 2009

Entrevista do Min. Carlos Ayres Brito

Fonte: Carta Capital


Otimista incorrigível, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Carlos Ayres Britto, acha que os políticos brasileiros vão compreender que os costumes precisam ser arejados e mudar suas práticas, ou não terão futuro. Enquanto este dia não chega, ele e os colegas de toga continuarão a julgar mandatários e, se preciso for, levá-los à guilhotina. De acordo com o ministro, o cruzamento de dados já não permite que se escondam coisas debaixo do tapete. “A tendência a desvendar os bastidores da política é animadora”, diz.



CartaCapital: Por que essas cassações estão acontecendo? O TSE está agindo com mais rigor? Carlos Ayres Britto: Estamos saneando paulatinamente os costumes políticos brasileiros. Não é por mérito deste ou daquele ministro, é por efeito de um processo de aperfeiçoamento do regime democrático. A democracia é a mãe de todas as grandes virtudes coletivas: moralidade, legalidade, impessoalidade, pluralismo, igualdade entre os contendores. Se a gente prima por observar estes princípios que chamamos de leis do voto, desembocaremos neste tipo de providência corretiva.

CC: Ou seja, daqui para a frente mais cabeças vão rolar?

CAB: Não existe esse projeto meio justiceiro, essa raja de sangue no olho, de que é preciso derrubar mais e mais políticos que se desmesuram no uso da máquina administrativa. Mas não se pode perder a oportunidade histórica de sanear os costumes políticos à medida que os julgamentos vêm acontecendo. A imprensa tem criticado que a contenda entre dois políticos favorece o autor, que expõe suas razões, traz suas provas, e desfavorece o réu, que apenas se defende. Muitas vezes, diz a imprensa, no julgamento, afastando o réu, apeando-o do poder, trocamos seis por meia dúzia.

CC: Como no caso do ex-governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, cujo adversário está cheio de processos e tomou posse em seu lugar...

CAB: Ora, não nos cabe antecipar as coisas, julgamos processo a processo. Não podemos julgar com um olho na missa e outro no padre, dizer: “Não vou fazer justiça aqui porque o segundo colocado também não merece”.

CC: Mas por que não convocar novas eleições?

CAB: A explicação é puramente jurídica. Para a Constituição, o que interessa é, em cargos executivos, que são majoritários, colocar no poder quem obteve a maioria dos votos válidos. Roseana Sarney, por exemplo, chegou pertinho, bateu na trave, mas não obteve. Jackson Lago também não e os dois foram para o segundo turno. No segundo turno, quem ganhar já tem a maioria, está legitimado. Mas vem a Justiça Eleitoral e guilhotina o primeiro lugar. Anulou os votos dele, mas não a eleição. No caso de Roseana, verificamos, no primeiro turno, se, sem os votos do candidato excluído, ela teve 50% mais um dos votos remanescentes válidos. E teve. Em Londrina não teve. Luiz Carlos Hauly (PSDB) ficou em segundo lugar no primeiro turno – vencido por Antonio Belinatti (PP), cujos votos foram anulados. Mas o terceiro e o quarto lugar tiveram, juntos, mais votos do que Hauly. Então o princípio da majoritariedade estava comprometido e convocou-se nova eleição.

CC: Essa é a letra da lei, ministro. Mas ver Roseana, no Maranhão, feudo de sua família, reclamar e ganhar de outro candidato por abuso de poder econômico soa como o roto falando do esfarrapado, não?

CAB: Soa. Mas o princípio da majoritariedade é ínsito à democracia. Do ângulo de Lago houve uma usurpação, lhe tomaram o mandato no tapetão. Do ângulo da Roseana é: “Devolveram meu mandato. Só não tirei o primeiro lugar no primeiro turno porque não fraudei, não assinei 1.817 convênios em ano eleitoral transferindo 805 milhões de reais para 156 municípios”. E esse é só um exemplo. É preciso entender que, pela ânsia de derrubar uma oligarquia, um feudo, não se pode perder o senso de medida, partir para o vale-tudo eleitoral. O que nós achamos, os cinco ministros, é que houve ilicitude na eleição de Lago. O grupo que se propôs a derrubar o clã Sarney se desmesurou, perdeu a noção de limite.

CC: Usou práticas piores?

CAB: Não sei dizer se piores, mas condenáveis. Quando isso acontece, você não deixa de ser escravo. Troca de senhor. No Maranhão, o (então) governador José Reinaldo Tavares congregou em torno de si três candidatos formalmente distintos, cada qual com seu partido, mas de fato unificados. O primeiro turno lá foi meio de fancaria, um arremedo. Houve uma só chapa não pró algo, mas contra algo. Isso é um defeito histórico da esquerda. As forças de esquerda não são propositivas, são desconstrutivistas. É um viés que vem de Marx, parece até uma maldição. Marx foi brilhantíssimo ao demolir as bases do capitalismo, mas não foi gênio ao erguer as bases do socialismo.

CC: Em sua opinião, dentre todos os crimes eleitorais, há um mais nocivo que os outros?

CAB: O pior de todos é o uso da máquina, porque não se distingue a administração do administrador, o espaço público é encarado como se fosse o prolongamento do espaço pessoal, familiar ou grupal. O uso da máquina administrativa é um golpe mortal na impessoalidade. Além disso, um dos princípios regentes da disputa é a paridade, a isonomia entre os contendores. Se você faz uso da máquina, quebra a espinha dorsal da isonomia. Os contendores já não estão em pé de igualdade para disputar.

CC: O tribunal estará de olho no uso da máquina pelo presidente Lula em 2010?

CAB: Espero que cheguemos a uma fase de maturidade da nossa vida pública que leve o governante a entender que, no ponto de partida da campanha, ele já é privilegiadíssimo. Toda a visibilidade é dele e de seu candidato. E se ele não se contenta com isso, parte para a indistinção entre o público e o privado, entre obras do governo e campanha eleitoral, é uma demasia que precisa ser podada urgentemente.

CC: Ainda se ganham muitas eleições de forma suja no País?

CAB: Isso tende a diminuir. Parto da convicção de que ou as pessoas compreendem que em uma democracia os costumes se arejam, mesmo, ou não têm futuro. O político vai parar um dia e dizer: “Ou eu mudo ou não tenho futuro”.

CC: Como ficou sua proposta de divulgar a ficha corrida dos candidatos na Justiça?

CAB: Como tudo que é novo, houve avanços e recuos. Mas conseguimos colocar na agenda das grandes discussões nacionais o tema da vida pregressa dos candidatos. Quando assumi a presidência do TSE, convoquei os partidos e coloquei ênfase em três focos: a questão do financiamento das campanhas eleitorais, o emprego do dinheiro arrecadado e a prestação de contas. Se cuidarmos bem dessas três coisas, poderemos fazer uma reforma política, porque está praticamente comprovado que a corrupção administrativa começa pelo financiamento espúrio de campanha. Quem financia por baixo dos panos vai cobrar por baixo dos panos.

CC: Há mais corrupção na política do que povoa o imaginário popular?

CAB: Não tenho condição de quantificar, mas, por efeito da maturação do processo democrático, viceja e se adensa uma compreensão de que tudo vem a lume, de que tudo deve vir à tona. E a tecnologia ajudou muito na visibilidade. Temos, hoje, no TSE 18 mil doações de campanha sob suspeita. Por quê? Porque agora a Justiça Eleitoral está cruzando os dados eletrônicos com o Banco Central, com a Receita Federal, INSS... Não vale mais esconder a poeira debaixo do tapete porque sempre vai aparecer alguém para levantá-lo. Não só vai descobrir a poeira como quem a colocou ali. A tecnologia, cada vez mais sofisticada, caminha na direção da ética, da transparência e da democracia. Antevejo uma sociedade em cinco, dez anos, bem melhor do que a atual. A tendência a desvendar os bastidores da política é animadora.

Nenhum comentário: